EU, ELITISTA
Janer Cristaldo
Em função do que
escrevo, particularmente das últimas crônicas sobre Higienópolis, tenho sido chamado
de elitista. O que não me surpreende, sempre fui elitista. Mas meu conceito de
elite não é o vigente. Não tem nada a ver com posses ou poder. Não tenho
consideração alguma por pessoas que são apenas ricas ou detentoras de poder. Se
forem ricas e cultas, se forem dotadas de sensatez, refinamento e savoir vivre,
bem-vindas sejam à minha mesa. Se são ricas e poderosas, mas vazias por dentro,
por favor mantenham distância. Vejo mais sensatez em meu barbeiro do que em
PhDeuses da USP. Minha faxineira tem mais bom senso que muito acadêmico.
Prefiro conversar com meus garçons do que com professores de Teoria Literária.
O mundo está cheio de
ícones bafejados pela mídia, tipo papa, Dalai Lama, Lady Gaga, Beatles, Pelé,
Lula, Xuxa et caterva. Para mim, não valem um vintém. Particularmente o papa,
dedicado funcionário do obscurantismo. Não tributo nenhum respeito a estes
senhores. Se um dia me estendessem a mão, recusaria a minha. Meus heróis são
outros. Platão, Sócrates, Galileu, Giordano Bruno, Cervantes, Swift, Nietzsche,
Renan, Hernández, Pessoa, Orwell, Alexandre, Schliemann, Fernão de Magalhães,
Champollion, Mozart, Verdi, Bizet, Fellini, Kurosawa. Hesito entre qual vida
mais me fascina, se a de Alexandre, de Schliemann ou de Magalhães.
Entre os amigos e
amigas de meu pequeno círculo, não há ninguém famoso. Nem rico. Conheci de
perto pessoas que sonham em roçar-se a certos ídolos. Certa vez, em uma festa
em Alphaville, vi um monte de gente se espremendo para tirar uma foto junto a
um afrodescendentão cheio de dentes. Quando perguntei a alguém de quem se
tratava, tive uma resposta perplexa. Como que eu não sabia de quem se tratava?
Era um famoso apresentador de televisão. Confesso que jamais ouvira falar do
distinto. Da televisão nacional, só assisto a algum noticiário e olhe lá!
Fiquei também sabendo
que era comunista. Mais uma razão para tomar distância. Não conheço comunista
honesto. Pelo que li mais tarde, elegeu-se deputado ou senador. Ou coisa que o
valha. Hoje, está atolado até o pescoço nessas corrupções inerentes a
políticos. É arriscado tirar foto com certas personalidades. Suponho que Obama,
Sarkozy, Berluscone ou Lula hoje se arrependam amargamente de terem posado,
cheios de sorrisos, junto a Kadafi.
Isto sem falar nas
sumidades que um dia abraçaram o poderoso responsável pelo FMI, Dominique Strauss-Kahn.
Que acabou se revelando um vulgar puxador de saias. A affaire revela o caráter
destes senhores. Como pode, um homem que com um estalar de dedos teria as
mulheres que quisesse, atacar uma camareira de hotel? De potestade do planeta a
prisioneiro em uma cela de 12 metros quadrados em Rikers Island. De candidato
preferencial à Presidência da França a personagem do Law & Order. Foi
preso pela Special Victimes Unit, como no seriado. Profundo mistério! Não, não
tenho apreço algum por detentores de poder, dinheiro ou fama. Prefiro o
convívio com meus anônimos amigos.
No fundo, sou um
aristocrata. Mas na acepção aristotélica de aristocrata, aquele que possui a
aretê, conceito elaborado pelos antigos filósofos gregos, que podemos traduzir
por virtude. No grego moderno tem mais o sentido de mérito, qualidade, aptidão.
No antigo, o de coragem e honra. Não que eu conheça grego antigo ou moderno.
Consultei uma boa amiga, apaixonada pela Heléia.
“Nas minhas idas e vindas pela cidade – dizia Sócrates –, não
faço outra coisa senão persuadir-vos, novos e velhos, a que vos preocupeis
mais, nem tanto, com o vosso corpo e as vossas riquezas do que com a vossa
alma, para a tornardes o melhor possível, dizendo-vos: a virtude não vem da
riqueza, mas sim a riqueza da virtude, bem como tudo o que é bom para o homem,
na vida particular ou pública."
O conceito de aretê
está intimamente ao de paidéia, o "processo de educação em sua forma verdadeira,
a forma natural e genuinamente humana" na Grécia antiga, segundo Werner
Jaeger, a cultura construída a partir da educação. O objetivo da paidéia não
era formar profissionais, mas treinar o cidadão para o exercício da liberdade e
da nobreza. É deplorável que esse conceito tenha ficado enterrado no fundo dos
tempos e a educação, hoje, tenha se transformado em instrumento de aquisição de
dinheiro ou poder. O avanço na história jamais coincidiu com superioridade
moral. Quantos mortais, hoje, teriam a dignidade de um Sócrates ou a visão e
coragem de um Alexandre?
Naqueles dias, lemos
na República, homem superior era o filósofo. Era o homem que não se entregava
à multiplicidade das impressões sensoriais, nem se deixava arrastar durante a
vida inteira pelo vai-e-vem das simples opiniões. Só ele possuía um
conhecimento e um saber no verdadeiro sentido destas palavras. Só ele podia
dizer o que era belo e justo em si. As opiniões da massa a respeito destas e
das restantes coisas oscilavam na penumbra entre o não-ser e o verdadeiro Ser.
O filósofo possuía a episteme. As massas se contentavam com a doxa, o saber
vulgar. O mundo mudou, e não foi para melhor. Hoje, homem superior é o roqueiro
ou jogador de futebol. E filósofo é qualquer acadêmico que fala de forma
obscura sobre coisas claras.
Sou oriundo de uma
geografia onde ser alfabetizado era como ter um olho em terra de cegos. Desde
muito cedo intui que conhecer é mais desejável que ter. Uma boa biblioteca,
para mim, vale mais do que um iate ou casa na praia. Considero mais inteligente
viajar do que ter carro. Nunca tive carro, não sei sequer dirigir, mas conheço
bastante bem o planetinha. Com carro não se vai longe. Melhor dois pés na
Europa que quatro rodas no Brasil. Melhor conhecer cinco ou seis línguas do que
ter dez ou vinte imóveis e ser monoglota. Melhor conviver com quem gostamos do
que roçar-se em mitos. Melhor gostar da mulher que está a meu lado do que
daquela que está longe.
Até hoje, guardo a
terna lembrança de uma amiga sueca. Era, para desgosto de sua família, guia turística.
Seus pais prefeririam que tivesse profissão mais rentável. Eram os dias da
Guerra Fria. Se um dia os russos invadirem a Suécia – me dizia Lena – podem
tomar as posses de todos os suecos. Mas minhas viagens eles não me tomam. Boa
parte de meus amigos são viajantes sem cura. Possuem posses que ninguém rouba.
Eu também. Se um dia um assaltante invadir meu apartamento, terá perdido seu tempo.
Sim, sou elitista. Mas
elitista a meu modo. Nada a ver com o que se chama usualmente de elite.
Janer
quarta-feira, maio 18,
2011