quinta-feira, 20 de setembro de 2012

20 de setembro

Gaúchos e índios
Em 1948 Manoelito de Ornellas escreveu “Gauchos e Beduínos: a origem étnica e a formação social do Rio Grande do Sul”. Neste livro, o destacado escritor discorre sobre a influência árabe na etnia e na cultura gauchesca, tendo como base a ocupação da Península Ibérica – perto de oitocentos anos – por povos árabes (beduínos, berberes e maragatos).
Esta influência também é constatada noutras regiões do Brasil, em decorrência da colonização portuguesa, porém, como destaca o autor, no caso do Rio Grande do Sul foi reforçada pela longa presença espanhola em nosso Estado.

Ao tomar conhecimento do tema da “Semana Farroupilha”, lembrei da obra de Manoelito de Ornellas, mas também lembrei dos povos indígenas, dai o titulo deste artigo. Resgatando a história da ocupação humana em terras sulinas, fica clara a decisiva contribuição dos povos indígenas para a origem do gaúcho e da cultura gauchesca. Esta contribuição, embora abordada por pesquisadores e historiadores, não tem na sociedade sul-rio-grandense o reconhecimento que merece.

Os registros da ocupação humana no Rio Grande do Sul datam de 12 mil anos, coincidindo com o final da última glaciação. Passados cerca de seis mil anos o clima tornou-se mais estável. As florestas se expandiram, ocupando as encostas do Planalto e as bacias dos rios Jacuí e Uruguai, enquanto os campos dominavam a metade sul do Estado. Já estava alinhavada a fisionomia do território sul-rio-grandense, o qual era habitado por Povos das Florestas, do Litoral e dos Campos.
Estes povos viviam da coleta, da caça e da pesca, fazendo uso de lanças, arcos e flechas, diferenciando-se culturalmente de acordo com os ambientes que ocupavam. Nas florestas do planalto montavam acampamentos próximos aos rios e utilizavam instrumentos de ossos e pedras, como picões e machados de grandes dimensões, adaptados para o corte de madeiras e raízes. No litoral e no entorno das grandes lagoas construíam habitações de formato circular e enterravam seus mortos em sepulturas revestidas com argila, conchas ou ossos de baleia. Os restos de sua alimentação, rica em fauna aquática, formaram depósitos elevados no terreno, compostos de muitas conchas, conhecidos atualmente como Sambaquis. Nos campos, grupos nômades acampavam nas margens dos riachos, erguendo abrigos cobertos por couro e folhas. Desenvolveram uma poderosa arma adaptada aos ambientes campestres: as boleadeiras.
Há cerca de dois mil anos estes povos experimentaram grandes transformações culturais, passaram a cultivar plantas e a produzir recipientes de cerâmica, em decorrência de intercâmbios com Povos Platinos e originários da Amazônia.
No planalto passaram a se abrigar do frio em casas subterrâneas, formando pequenas aldeias. Seus mortos eram enterrados e cobertos por pedras em cemitérios coletivos. Produziam objetos de cerâmica e a pedra passou a ser minuciosamente polida para a fabricação de instrumentos, como o pilão utilizado para macerar grãos e pinhões. Trocavam a erva mate dos ervais naturais de seus territórios por produtos manufaturados dos Guarani. Estes povos originaram o grupo indígena Gê, dos quais descenderam os Kaingang. No século 19 os colonizadores os denominaram de Coroados, Botocudos ou Bugres.
Os povos das regiões litorâneas erguiam choupanas com paredes de taquara barreada, em aterros de forma circular ou elíptica, identificados como cerritos. Utilizavam boleadeiras, redes e armadilhas de laço para caçar e pescar. Em estreita interação com descendentes dos Povos dos Campos deram origem aos Minuano e Charrua, denominados pelos europeus de Pampeanos. Nômades, vagavam pelo pampa caçando emas, capivaras e veados campeiros, cujas carnes – em espetos de paus – eram assadas sobre braseiros. Utilizavam faixa na cabeça para prender os cabelos e chiripás. Adotaram dos Guarani o hábito de tomarem mate.
Partindo da Amazônia, em busca da terra sem males, grupos Guarani lançaram-se em direção ao sul. Guerreando com tribos dos índios Gê e Pampeanos foram ocupando parte dos seus territórios, com preferência para as áreas de florestas. Praticavam a coivara para cultivo de mandioca, amendoim, feijão, milho, tabaco, abóbora, algodão, porongo e plantas medicinais. Viviam em aldeias formadas por grandes casas onde morava uma família inteira. Dormiam em redes e preparavam os alimentos em fogo de chão. Usavam adornos, praticavam ritos religiosos animados por músicas e danças, enterravam os mortos diretamente no solo ou em vasilhas de barro. Tomavam mate e apreenderam a utilizar as boleadeiras com os Pampeanos.
É neste ambiente cultural e natural que no século 17 os Povos Ibéricos, dentro do processo de ocupação e colonização da América Latina, intensificaram sua presença em terras do futuro Rio Grande do Sul. Em 1610 padres jesuítas portugueses chegaram por terra, aldeando índios Guarani, empreitada interrompida em 1620 devido as agressões dos bandeirantes de São Vicente, que buscavam nativos para escravizarem. Por sua vez, em 1626, jesuítas espanhóis oriundos das Missões de Guairá cruzaram o rio Uruguai e fundaram com os Guarani, até 1633, dezoito reduções, ocupando boa parte do atual território gaúcho, onde disseminaram o gado.
Entre 1636 e 1641 os bandeirantes atacaram estas reduções, fazendo com que padres e índios às abandonassem, refugiando-se na margem ocidental do rio Uruguai. O gado (vacum, cavalar e muar) deixado pelos espanhóis, favorecido pelas condições ambientais, reproduziu em abundância formando as “Vacarias do Mar”. Os índios, principalmente os Charrua e Minuano, habituaram-se aos cavalos e, valendo-se da milenar boleadeira, praticavam a caça do gado.
A grande oferta de animais xucros despertou nas Coroas Ibéricas um maior interesse pelas terras do Rio Grande do Sul. Assim, aqui foram chegando espanhóis, castelhanos crioulos, portugueses, luso-brasileiros, negros (na condição de escravos) e açorianos, iniciando um intenso processo de miscigenação com os povos indígenas.
Na disputa pela navegação no Rio da Prata e posse do território pampeano, Portugal funda em 1680, na margem oriental do Prata, a Colônia do Santíssimo Sacramento. Em 1682 jesuítas espanhóis cruzam novamente o rio Uruguai e até 1707 constroem os Sete Povos das Missões. Cada povoado possuía completa infraestrutura, lavouras, plantações de erva mate e estâncias de criação de gado, formando-se nesta fase – nos campos do Planalto – as “Vacarias dos Pinheirais”.
A grande autonomia dos Povos Missioneiros, que chegou a controlar 60 % do comércio da Bacia do Prata, contrariou as Coroas Ibéricas. Em 1750 estes reinados assinam o Tratado de Madri, onde Portugal entregava a Colônia de Sacramento à Espanha e esta repassava o território dos Sete Povos para Portugal, devendo padres e índios abandonarem suas terras. Os nativos chefiados por seus caciques, destacando-se Sepé Tiarajú e Nicolau Languirú, rebelaram-se, ocorrendo vários conflitos armados que ficaram conhecidos como Guerras Guaraníticas. Em 1756 os exércitos de Portugal e Espanha unidos derrotaram os Missioneiros, sendo morto na batalha de Caiboaté o cacique Sepé. Estava decretada a derrocada da experiência missioneira.
Os Guarani dispersaram-se pelo território sulino, juntamente com os Pampeanos e mestiços, passaram a viver da arreada e preá do gado. Estes homens eram hábeis no manejo do cavalo, da boleadeira e na doma em campo aberto. Portavam chiripá, bota garrão de potro, ponchos, lanças, laços e facas. Como seus antepassados índios eram nômades; chamavam suas companheiras ou amasias de chinócas; gostavam de dançar, jogar e dedilhar uma guitarra; trabalhando na lida campeira quanto tinham necessidade.
Com o surgimento das estâncias privadas prestavam trabalhos esporádicos aos estancieiros. Como as propriedades ainda não eram cercadas, vagavam pelos campos não se sujeitando as leis das Coroas. Também não reconheciam donos para o gado, servindo-se deste rotineiramente. Chamados de gaudérios, garruchos ou gaúchos, esquivavam-se das autoridades e foram considerados foras da lei. Peleavam com facilidade e participaram das guerras de fronteira e de lutas armadas internas. Quando os latifúndios passaram a ser demarcados com cercas de arame, perambularam pelos corredores de campo ou tornaram-se tropeiros, posteiros e peões nos galpões das fazendas.
O gaúcho idolatrado – tornou-se motivo de orgulho na Argentina e Uruguai e denominação gentílica no Rio Grande do Sul – contou com a contribuição da literatura platina, destacando-se obras como “Dom Segundo Sombra” (Ricardo Guiraldes), “Martin Fierro” (José Hernándes), “Cancioneiro Guasca” e “Contos Gauchescos” (ambos de Simões Lopes Neto). Mas se o gaúcho e o gauchesco – independente das concepções tradicionalistas que produzem e reproduzem uma “cultura inventada” – ganharam reconhecimento enquanto tipo humano e cultura de uma região, o mesmo não aconteceu com os índios, etnia basilar na formação do gaúcho.
A ocupação do Rio Grande do Sul pelos colonizadores europeus foi trágica para os povos indígenas. Grande parte da população nativa foi dizimada, os Guarani e os Kaingang, que sobreviveram ao massacre das Guerras Guaraníticas ou a perseguições dos bugreiros, sobrevivem hoje em precárias reservas, em acampamentos improvisados ou nas ruas das cidades. Os Pampeanos, pela forte resistência que ofereceram aos colonizadores, foram praticamente extintos, existindo hoje no Estado três pequenas comunidades que reivindicam o seu reconhecimento como Charrua. Por outro lado, de acordo com pesquisadores da UFRGS, grande parte da população do Rio Grande do Sul apresenta hereditariedade indígena.
Apesar desta realidade a cultura e o gene indígena, vararam séculos e se fazem presente nos gaúchos de hoje. Chiripá, jacuí, amendoim, faixa na cabeça, ibicuí, porogo, bota garrão de potro, ibirapuitã, paçoca de pinhão, pilão, abóbora, tupanciretã, anguera, laço de couro, vacacaí, cozido com mandioca, boitatá, rancho de pau a pique barreado, grito de sapucai, fogo de chão, jaguar, milho assado, guri, taquarí, boleadeiras, pampa, pala, palheiro, churrasco, chimarrão, tatu, chácara, imembuí, chê, pelos duros, morenas da fronteira, herói e mito Sepé Tiaraju. Tudo isto é gaúcho, tudo isto e muito mais é legado indígena.
Quando os gaúchos se reconhecerem como herdeiros da milenar cultura indígena:


  • a luta contra os preconceitos em relação aos Guarani, Kaingang, Pampeanos e mestiços será reforçada; 
  • os sambaquis, os cerritos, as ruínas missioneiras e outros sítios arqueológicos receberão a devida atenção; 
  • a recuperação e demarcação das terras indígenas e as melhorias nas reservas, contarão com maiores apoios; 
  • a política de cotas será melhor compreendida; 
  • a cultura indígena e gauchesca (não confundir com tradicionalismo) terá maiores espaços, estando lado a lado com as culturas das outras etnias presentes na sociedade sul-rio-grandense.

Hay os que se perdem por perder raízes que não acham mais
Hay os que se encontram por voltar as fontes dos seus ancestrais
E as encruzilhadas parecem caminhos a se afastar
Quando na verdade são pontos de encontro pra quem quer voltar
(Cenair Maicá)

Porto Alegre, setembro 2011.
Luis Fernando Barrios (Nandi)
Engenheiro Florestal

Postado por Juremir em 14 de setembro de 2011 - História