A
"doença britânica" rondava a Europa dos anos 1970. Um importante
quebra-cabeças para cientistas políticos como Mancur Olson era "por que a
Grã Bretanha, a grande nação com a mais longa imunidade a ditaduras, invasões e
revoluções, teve no século XX a menor taxa de crescimento entre todas as
grandes democracias desenvolvidas".
Em The
Rise and Decline of Nations, Olson explica que o desenvolvimento adiantado do
Reino Unido havia plantado as sementes de sua própria destruição. A
estabilidade britânica possibilitou a consolidação de uma variedade de grupos
de interesse predatórios à produtividade e à inovação. Organizações e colusões
industriais, sindicatos e ordens profissionais, haviam se multiplicado em
número e poder de maneira que seus interesses rentistas faziam a Grã-Bretanha
"sofrer de uma esclerose institucional que freava sua adaptação a mudanças
no ambiente e nas tecnologias".
Olson
havia escolhido o Reino Unido para seu estudo de caso. O país servia de emblema
de declínio institucional. Enquanto escrevia no final da década de 1970, Olson
analisava um país que, antigamente progressista, agora havia se tornado
economicamente estagnado e politicamente "ingovernável".
Foi
nesse momento que uma coisa aconteceu. Aconteceu Margaret Thatcher.
1. A
Ascensão
Ainda
criança, nos anos 1930, Thatcher começou a desenvolver sua compreensão do
funcionamento do mercado. Dividia o tempo dos estudos com a ajuda que prestava
a seu pai no comércio.
Mais
tarde Thatcher iria dizer que aprendeu com seu pai as virtudes "do
trabalho árduo, da auto-suficiência, da poupança, do dever, e de manter suas
convicções mesmo quando se está em minoria".
Essa
convicção lhe rendeu o título de "Dama de Ferro", apelido dado pelo
governo soviético de Leonid Brezhnev. Depois de entrar para a Universidade de
Oxford, suas convicções se fortaleceram com a leitura de John Stuart Mill e
Friedrich Hayek. Já nos anos 1960, ela questionava o posicionamento do seu
partido, cada vez mais simpático ao keynesianismo dos trabalhistas.
Conservadores e Trabalhistas concordavam quanto à sacralidade do welfare state
e da estatização econômica. Thatcher começou a mudar a Inglaterra mudando o
próprio partido. E foi mudando a Inglaterra que contribuiu para que o mundo
também mudasse.
Em uma
visita ao Departamento de Pesquisa Conservador nos anos 1970, um centro de
pensamento do partido, Thatcher ouvia seus colegas de partido falando da
concessão estratégica aos valores trabalhistas, o chamado "middle
way". Thatcher interrompeu a discussão jogando uma cópia de The
Constitution of Liberty de Hayek na mesa e afirmando, "é nisso que nós
acreditamos".
Thatcher
não se via como uma política atrás do consenso. Ela se via como uma política à
frente da liderança. Políticos em geral procuram todos os meios de seguir a
opinião pública - contratam equipes de Relações Públicas, montam grupos de
foco, fazem pesquisas diárias etc. Thatcher não estava disposta a seguir a
opinião pública, ela queria mudar a opinião pública.
2. O
Governo
A
ascenção dos Conservadores ao poder em 1979 encontrou o Reino Unido com juros
de 16% e uma inflação programada para chegar aos 20%, quando fossem honradas as
promessas Trabalhistas. O parlamentarismo britânico havia cedido espaço a uma
novo sistema de governo, o sindicalismo. Governos passados haviam sido
demolidos pelos sindicatos: Harold Wilson em 1970, Edward Heath em 1974 e James
Callaghan em 1979.
O clima
de guerra econômica associado ao crescimento do desemprego e à disparada do
preço internacional do petróleo foi minando de cara a popularidade de Thatcher.
Já nos primeiros anos da década de 1980 seu declínio político parecia iminente
e inevitável. O governo Thatcher seria a peça da vez do sindicalismo britânico.
Azar na
política doméstica, sorte na política externa. Em abril de 1982, o regime
militar argentino decide invadir as Ilhas Falklands. Os habitantes das
Falklands eram de descendência britânica há seis gerações, desde a colonização
de 1820. O que começou como uma diversão argentina, acabou como uma bênção
inglesa. Em 1981, antes da guerra, a popularidade de Thatcher estava em 25%.
Depois da guerra, saltou para 50%. Não
foi difícil derrotar a Argentina. Como brinca o comediante Ricky Gervais, era
uma guerra de alcance, e os navios britânicos tinham alcance maior do que os
argentinos: "foi o equivalente bélico de segurar um anão com o braço
esticado".
Thatcher
aproveitou o embalo da vitória para declarar guerra ao poder dos sindicatos e
dos monopólios industriais, considerados por ela os dois grandes problemas da
economia britânica". Suas medidas de austeridade provocaram greves pro
todo o país. Um sindicato em particular parecia indestrutível: a União Nacional
dos Mineradores. As greves dos mineradores de 1984 fugiam dos procedimentos
legais - o vice-presidente do sindicato afirmou que eles não seriam
"constitucionalizados a uma derrota" - e dos meios mais democráticos
- a proposta de um plebiscito entre os trabalhadores para decidir a greve foi rejeitada
por votação entre os dirigentes sindicais.
O
governo de Thatcher aproveitou essa deficiência de legitimidade para firmar sua
posição. Apesar de receber ajuda financeira procedente de grupos
socialdemocratas do resto da Europa Ocidental, e, provavelmente, da União
Soviética, os problemas internos da União Nacional dos Mineradores contribuíram
para sua fragilidade. Em 1985, depois de um ano de greves, o sindicato cedeu.
Thatcher registrava uma vitória contra o sindicalismo.
Em sua
próxima campanha pelo desmantelamento das estatais que haviam enrijecido a
economia britânica, Thatcher inventou uma nova modalidade de políticas
públicas: as privatizações. Portos, aeroportos, ferrovias, exploração de
petróleo e gás, telefonia, eletricidade... Thatcher conseguiu tirar parte da
economia da lógica da burocracia e devolvê-la para a escolha dos consumidores.
O
primeiro caso de sucesso foi o da British Steel, uma equivalente à nossa Vale
no Reino Unido. Em 1987, no ano anterior à sua privatização, a British Steel
estava batendo seu recorde negativo com um prejuízo de 500 milhões de libras .
Tão logo se encerram os anos 1980, ela havia se tornado a siderúrgica mais
lucrativa do planeta, com um índice de produtividade superior a qualquer outra
siderúrgica europeia.
3. O
Legado
Durante
os anos 1980, o Reino Unido passou de estudo de caso a modelo econômico. Em
1988, bateu seu recorde econômico pós-guerra, crescendo a 4% depois de sete
anos de crescimento ininterrupto. Sindicatos e estatais garantiam privilégios para
uma elite e emprego para alguns. Desmontá-los deixou muitos em situação de
vulnerabilidade. Mas foram essas reformas que garantiram que novos empregos
aparecessem - empregos melhores. As reformas de Thatcher aumentaram a
produtividade do trabalhador britânico. Por vários anos durante a década de
1980, a Grã Bretanha alcançou a maior taxa de produtividade de toda a Europa.
Ao
limitar o desperdício do setor público, o governo Thatcher reduziu a carga
tributária média de 37,5% para 25% e a alíquota máxima sobre a renda de 87%
para 40%. Sua priorização do superavit orçamentário permitiu que o estado
britânico pagasse 1/5 de toda a dívida nacional. O thatcherismo condenado pelo
Partido Trabalhista nos anos 1980 acabou sendo mantido no governo Trabalhista dos
anos 1990. Havia se criado um novo consenso a partir da convicção de Thatcher
de que só uma economia de mercado poderia derrotar a "esclerose
institucional" do seu país.
Apenas
Nixon podia ir a China. E apenas Thatcher podia reformar a Inglaterra com virilidade.
Como diz o escritor Christopher Booker, em linguagem um pouco jungiana,
"ela representou os 'valores do pai' mais do que qualquer outro político
da sua geração." Talvez por esse motivo poucas feministas admirem Thatcher
como a primeira grande líder política do ocidente democrático.
O
legado menos percebido de Thatcher foi a ponte edificada por ela e Keith Joseph
da academia para a política partidária. Thatcher sempre reconheceu sua dívida
intelectual para o Institute of Economic Affairs(IEA). Nomeou, logo depois de
eleita, o diretor do IEA, Ralph Harris, para a Câmara dos Lordes. "Foi
primariamente seu trabalho de base" escreveu Thatcher, "que nos
permitiu reconstruir a filosofia sobre a qual nosso partido alcançou
sucesso".
Se o
resto do mundo seguiu políticas de Thatcher, ainda resta reconhecer a
importância dos Centros de Pensamento (os Think Tanks), como o IEA, para dar
substância a reformas políticas. Thatcher foi grata aos "solitários"
acadêmicos que mantinham viva a tradição liberal: "eles eram poucos, mas
eles estavam certos, e foram eles que salvaram a Grã-Bretanha."
Epílogo
O
liberalismo é uma ideia. O neoliberalismo é uma narrativa. Narrativas funcionam
como poderosos modelos mentais. Recortam e dão sentido a uma série de eventos,
enquanto escondem outros tantos. O que fiz aqui foi utilizar os elementos
básicos de uma narrativa para modelar as ideias de Thatcher. Abri com o
elemento 1, do "era uma vez". Parti para o elemento 2, do "até
que algo aconteceu". Esse acontecimento se abre o elemento 3, "o
chamado" vocacional. A ação se desenvolve então no elemento 4, "o
conflito", em que vilões e mocinhos, o bem e o mal, se dividem.
Finalmente, temos o elemento 5, "a resolução", em que a heroína
triunfa sobre o mal.
A lição
de Thatcher deve estar nas ideias, não na narrativa. Talvez meu recorte acabe
sugerindo que a trajetória de Thatcher culminou numa era de dominação
neoliberal, quando na verdade o trabalhismo, o keynesianismo e o
desenvolvimentismo continuam vivos no nosso capitalismo para os ricos,
socialismo para os pobres. Amarrar a validade de certas ideias a uma narrativa
é o tipo de comportamento que leva, na melhor das hipóteses, à esclerose
institucional; na pior, a ditaduras, invasões e revoluções.