segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Homens que não aderem a nada

Por Janer Cristaldodiminuir o tamanho da fonte


Dominado de ponta a ponta por uma religião laica e assassina, o século passado pode ser denominado como o século marxista. A Revolução de 17 constituía um marco de definição obrigatória para todo intelectual e os melhores cérebros do Ocidente aderiram com entusiasmo à nova crença.
Moscou, para os crentes órfãos do deus hebraico-cristão, torna-se a Terra Prometida, a Nova Jerusalém. Intelectuais do mundo todo, peregrinos, em procissão, vão adorar o novo Messias. Entre os criadores do Ocidente, coube principalmente aos escritores — definidos por Zdanov como “engenheiros de almas” — fornecer a maior fatia de apóstolos da nova religião.

A lista demandaria páginas e páginas. Alguns nomes, entre milhares: Nikos Kazantzakis, André Gide, Bertold Brecht, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Annie Kriegel, Louis Aragon, Henry Barbusse, Romain Rolland, Heinrich Mann, Paul Eluard, Vaillant-Couturier, Roger Garaudy, Henri Léfebvre, Rafael Alberti.
Na América Latina, sem querer esticar muito a relação: Pablo Neruda, Otávio Paz, Jorge Amado e Graciliano Ramos. Verdade que desta lista alguns nomes irão cair, é o caso de Gide e Otávio Paz. Mas os demais permaneceram cegos ante a evidência dos fatos e morreram stalinistas ferrenhos, ou ainda vivem, confusos crentes incapazes de mudar de crença.

Não foram muitos os escritores a intuir que não se estava precisamente ante uma revolução, mas ante uma nova religião. Entre estes, poucos foram tão precisos na denúncia do novo dogma como Nikos Kazantzakis. No relato de sua peregrinação à Rússia — Voyages — Russie —, diz o cretense que pouco a pouco a luz se fazia em seu espírito. Para ele, todos os apóstolos do materialismo davam às questões respostas grosseiras, de uma evidência simplista. Como em todas as religiões, eles buscavam divulgar essas respostas, tentando torná-las compreensíveis para o povo. Kazantzakis reconhece então, na Rússia, a existência de um exército fanático, implacável, onipotente, constituído de milhões de seres, que tinha em mãos e educava como bem entendia milhões de crianças.

Este exército, diz o cretense, possui seu Evangelho, O Capital. Seu profeta, Lênin. E seus apóstolos fanatizados que pregam as Boas Novas a todas as gentes. Possui também seus mártires e heróis, seus dogmas, seus padres apologistas, escolásticos e pregadores, seus sínodos, sua hierarquia, sua liturgia e mesmo a excomunhão. E sobretudo a fé, que lhe assegurava deter a verdade e trazia a resposta definitiva aos problemas da vida.

Não há apenas um Livro — acrescentaríamos —, como também os livros apócrifos. Assim como a Igreja Romana censura os testemunhos gnósticos que não servem à sua ambição de poder, assim censurou-se até mesmo a obra de Marx na finada União Soviética. “Nós somos contemporâneos — diz Kazantzakis — deste grande momento em que nasce uma nova religião”. A nova religião nascera e os intelectuais do Ocidente, os lúcidos entre os lúcidos, caíram como patinhos no engodo. Este é o grande enigma que cerca o fenômeno Stalin: como foi possível que espíritos abertos e generosos da época se tornassem cúmplices e devotos deste formidável assassino? Ou talvez não fossem tão lúcidos, nem tão abertos nem tão generosos, e sim pobres crianças em busca de um novo pai? Não será por acaso que a ladainha mais freqüente entoada a Stalin é a de Paisinho dos Povos.

Poucos homens representativos das letras da primeira metade do século passado tiveram suficiente lucidez para escapar ao fascínio do novo Deus. Entre estes, Pierre Pascal, Panaïti Istrati, David Rousset, Arthur Koestler, George Orwell, Victor Serge, Albert Camus, Ernesto Sábato. Todos pagaram seu preço. Na Europa e, conseqüentemente, entre nós, extensão da Europa, tiveram decretadas suas mortes civis e uma espécie de excomunhão os baniu do mundo do pensamento. Enquanto os intelectuais de Paris entoavam loas à Revolução de 17, um humilde camponês dos Balcãs dela tomava distância. Panaïti Istrati, escritor romeno de expressão francesa, teve o mérito de denunciar em primeira mão, doze anos após a Revolução, o embuste do século.

Panaïti nasceu em Braila, Romênia, em 11 de agosto de 1884, e morreu em Bucareste, em 1935 – diz-nos o Dicionário Literário Bompiani -. Filho de um contrabandista grego das Cefalônia, a quem nunca conheceu, e de uma camponesa romena, passou a infância nos bairros pobres do porto. Aos 20 anos, colaborava no Romênia operária, e iniciou uma intensa atividade social que o levaria ao cargo de secretário do sindicato de trabalhadores portuários. Seu espírito inquieto e sua vocação de nômade o induziram a uma aventureira série de viagens, interrompida apenas por alguma estada na pátria. Visitou os países do Oriente Próximo – Grécia, Palestina, Turquia e Egito – e, logo, Itália, França, Suíça e África do Sul, nas condições mais duras, faminto e às vezes doente, e em certas ocasiões viajou como clandestino em vapores dos quais era desembarcado na primeira escala.

Atrás de qualquer espécie de trabalho, desta forma chegou a ser garçom, fotógrafo ambulante, etc. Isso lhe permitiu reunir o tesouro de impressões e observações, com frequência cruamente realistas, que expressou em um estilo muito pessoal, no qual os elementos franceses livremente adquiridos se fundem com outros autóctones, em uma síntese realizada através do estro linguístico mais singular e vigoroso.

Vivendo na miséria, doente e deprimido, ele tenta suicidar-se sem sucesso em 1921. Esta tentativa acaba transformando sua vida. Em janeiro de 1921, Roman Rolland recebeu do hospital de Nice uma carta encontrada em cima de um homem que havia tentado suicidar-se cortando a própria garganta. Ao lê-la, o escritor francês teve a impressão de encontrar-se frente à obra de um gênio. Quando o ferido, que era Istrati, se curou, quis conhecê-lo, e escreveu o prólogo a Kyra Kyralina, que teve grande êxito na época.

Convidado para os festejos do décimo aniversário da Revolução de Outubro, em 1927, Panaïti encontra-se em Moscou com o cretense Nikos Kazantzakis, místico apaixonado por Cristo, Buda e Lênin. Esta viagem o afastará definitivamente do comunismo. O romeno não entende, no país da revolução, a fome e a miséria que vê por toda parte. Kazantzakis objeta que não se faz omelete sem quebrar ovos. Panaïti insiste. Só vê ovos quebrados e nada de omelete.

Em 1929, Istrati publica Vers l’autre flamme, primeira denúncia do stalinismo no Ocidente, anterior às denúncias de Gide, Koestler e Orwell, nos anos 30. A recusa ao novo dogma é tão traumática que, tendo seu livro publicado em Paris, em 1929, uma segunda edição só surgiria em 1980. Suas Obras Completas são publicadas pela Gallimard, exceto Vers l’autre flamme, cujos originais levaram Romain Rolland, seu padrinho literário em Paris, a aconselhá-lo:

“Isto será uma paulada a toda Rússia. Estas páginas são sagradas, elas devem ser consagradas nos arquivos da Revolução Eterna, em seu Livro de Ouro. Nós lhe estimamos ainda mais e lhe veneramos por tê-las escrito. Mas não as publique jamais”.

Panaïti publicou. Na libertária França, seu livro foi banido do mundo das letras por meio século. O argumento de Romain Rolland serviu, durante décadas, para calar qualquer crítica ao comunismo. No Brasil, nos anos 60, Erico Verissimo aconselhava o escritor gaúcho Sérgio Faraco, pelas mesmas razões, a não publicar o relato de seus dias em Moscou. Faraco, subserviente, calou-se. Só ousou falar em 2002, em seu livro Lágrimas na Chuva. Treze anos após a Queda do Muro, onze anos após a dissolução da União Soviética.

Após sua brutal decepção com o novo dogma, Istrati anuncia este homem novo, liberto das religiões e dos partidos: 

“Vejo nascer na rua um homem novo, um indigente. Um indigente que não crê em mais nada, mas que tem uma fé total nas forças da vida. Eu lhe digo: após ter tido fé em todas as democracias, em todas as ditaduras, em todas as ciências, e após ter sido por todas decepcionado, minha última esperança de justiça social fixou-se nas artes e nos artistas. Viva o homem que não adere a nada”.

Pioneiro na denúncia da mais longa ditadura do século passado e vítima de uma campanha de denegrimento por parte dos comunistas, Panaïti se retira na Romênia, onde morre de tuberculose em um sanatório, em 1935, com 51 anos. Pecou pelo otimismo. O homem que não adere a nada ainda está por nascer. O homenzinho contemporâneo continua aderindo a qualquer mentira prestigiosa.
Vers l’autre Flamme teve uma edição no Brasil, em 1946, com o título Rumo a outra Flama, 17 anos após sua publicação na França. A segunda edição é esta, 67 anos depois da edição brasileira.


Um gaúcho de coragem

 Por Janer Cristaldo (1947/2014)


A História é um lago que seca. Ao descerem, suas águas trazem à tona monstros insuspeitos. Todos os escritores gaúchos foram cúmplices da peste marxista. Não apenas os comunistas, como Faraco, Dyonélio Machado, Ciro Martins, Josué Guimarães, Ary Saldanha, Lila Ripoll, Laci Osório, Ivan Pedro de Martins, Edith Hervé, Isaac Axelrud, Otto Alcides Ohlweiler, Juvenal Jacinto de Souza, Antônio Pinheiro Machado Netto, que por ofício tinham de prestar culto à União Soviética.

Dyonélio, após a evidência dos gulags, passou a escrever sobre a antiga Grécia. Era homem íntegro e generoso, mas mal informado. Foi o mesmo movimento espiritual de Faraco, que refugiou-se em Urartu, na Armênia. Josué Guimarães foi caixeiro-viajante a serviço de Pequim e Moscou. Até as pedras da Rua da Praia sabiam que estes senhores eram comunistas, mas ai de quem o dissesse em público. Seria execrado como delator e expulso do rol dos vivos.

Desde os anos 30, Moscou aprendeu como conquistar intelectuais no Ocidente: bastava oferecer-lhes viagens e mordomias, com a nonchalance de quem joga milho às galinhas. A longa linhagem de intelectuais vendidos alberga desde pinheiros natos a expressões mais altas, tipo Kazantzakis, Aragon, Neruda, Brecht, Lukács, Sartre, Simone, Jorge Amado, Graciliano Ramos e vou ficando por aqui, que a lista seria infinda. O stalinismo, dogma já superado na Europa, ainda vige na América Latina.

Uma estranha patologia contaminou o final de século em Porto Alegre. Por todas as partes do mundo, as sociedades derrubavam mitos, monumentos, símbolos de tiranias passadas. Parece que a peste se entranhou de tal forma na universidade e nas instituições culturais da capital gaúcha que, enquanto a humanidade avançava - para a frente, como é normal - a intelectuália do Portinho virava as costas para o futuro e fica acariciando um baú repleto de coisas mortas.

Tiveram no entanto prestígio os escritores que teceram loas ao comunismo. Os que mais teceram loas foram exatamente os que tiveram chance de conhecer a União Soviética de perto. O caso mais emblemático terá sido o de Antônio Pinheiro Machado Netto, que só via uma hipótese da queda do muro de Berlim: a adesão da Alemanha Ocidental ao regime comunista.

Antônio Pinheiro Machado Netto e o Muro de Berlim - Em 1985, apenas quatro anos antes da queda do Muro, quando a Alemanha Oriental aderiu ao capitalismo, Machado Netto publicou Berlim: Muro da Vergonha ou Muro da Paz?, edição da L&PM, com terna homenagem em suas primeiras páginas a Luiz Carlos Prestes, esta alma penada que perdeu a noção da época em que vivia, e morreu encaracolado em um stalinismo obtuso, primário e criminoso.

Tendo visitado por duas vezes a URSS, a convite do Comitê dos Partidários da Paz na União Soviética, e uma terceira vez a Tchecoeslováquia, pela Assembléia pela Paz e pela Vida, e sentindo-se na obrigação de pagar suas mordomias em alguma moeda — desde que não dólares — nosso turista apressado entoa loas ao muro que durante três décadas constituiu o mais sinistro e desumano marco erigido pelo comunismo russo. Pincemos, cá e lá, alguns trechos desta cretina defesa do totalitarismo. 

Hoje não se pode mais falar em reunificação da Alemanha, pura e simplesmente, com fundamento tão somente na língua e história comuns. (...) Não se pode, todavia, afastar a hipótese de, num futuro mais ou menos remoto, vir a ocorrer a unificação (como aconteceu no Vietnã). Esta hipótese, porém, só pode ser considerada se na chamada Alemanha Federal — RFA — passar a existir também um regime socialista.

Uma das maiores bobagens veiculadas no Brasil sobre o Muro de Berlim é que ele foi erguido para evitar as fugas de alemães da RDA para a parte oeste de Berlim. Esta asneira é veiculada até por pessoas que gozam de alguma credibilidade no Brasil, e por órgãos de comunicação, que se apresentam como veículos fiéis à verdade.

Todos os epítetos lançados contra o muro — afronta à liberdade, vergonha, etc., etc. — escondem apenas o ressentimento e a frustração dos fazedores de guerra que, naquela linha de fronteira, viam o começo da terceira guerra mundial por que tanto sonham, e para cujo deflagrar tudo fazem, com vistas a salvar o capitalismo da crise irreversível em que está mergulhado.

É natural que na RDA e nos demais países socialistas a tendência seja a diminuição do índice de criminalidade, de vez que as infrações penais que têm origem na miséria, numa vida difícil e atormentada, com dificuldades econômicas e financeiras, tendem a desaparecer por completo nos países socialistas, e muito particularmente na RDA.

Mas, decorridas quatro décadas, essa mesma Alemanha Ocidental — eis a grande verdade — não resolveu problemas vitais do povo alemão que vive na região ocidental. Mais do que isso. Hoje a República Federal da Alemanha — RFA -, como todo mundo capitalista, é um país atormentado por uma crise de vastas proporções, crise política, econômica, social e moral.

A realidade alemã ocidental hoje reflete a crise que avassala o sistema capitalista. Na RFA a situação social também vem se agravando. Progressivamente aumenta a pobreza.

Os sindicatos da RFA estão prevendo que até 1990 cerca de 100 mil pessoas perderão seus empregos, atualmente, por força da automação. Afora, evidentemente, o desemprego resultante da crise do capitalismo que existe na RFA e em todo o ocidente capitalista, e que vai continuar.

Os meios de comunicação de massa do Ocidente já “decretaram” que nos países socialistas não há liberdade para os cidadãos e que, especialmente, inexiste liberdade de imprensa. Também “decretaram” que os direitos humanos não são respeitados no mundo socialista.

Daqui cinco anos, na RDA, não haverá mais desconforto habitacional — todas as famílias terão sua casa. 

Acho que chega. Este senhor, defensor dos restos podres do stalinismo, foi Conselheiro Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. 

A paranóia parece ser genética. Um outro Pinheiro Machado, o Luiz Carlos, durante décadas, pretendeu submeter os genes às leis da dialética, defendendo as experiências fajutas de Lyssenko, pupilo de Stalin que por seu dogmatismo quase arrasou com a agricultura russa, tornando-a dependente, até hoje, de grãos do Ocidente. Luiz Carlos teve certa sorte: não teve editores que publicassem suas asneiras. O mesmo não aconteceu com Antônio.

Josué Guimarães e a fortaleza assediada - Um outro escritor gaúcho, viajante e venal, foi Josué Guimarães, morto em 1986. As Muralhas de Jericó, publicado postumamente em 2001, são relatos de sua viagem à União Soviética e China comunista em março-abril de 1952, como correspondente especial do jornal Última Hora, do Rio de Janeiro. O livro foi escrito em junho daquele ano e só publicado doze anos após a queda do muro de Berlim e dez anos após o desmoronamento da União Soviética.

Na apresentação do livro, Maria Luiza Ritzel Remédios afirma que o autor-narrador parece sentir-se como o Josué da Bíblia que, no comando dos israelitas, penetrou a citadela inexpugnável, pois ele está a alcançar a União Soviética até então separada do mundo ocidental. E aqui já vai um equívoco da prefaciadora. Os anos 50 constituíram talvez o auge da influência de Stalin no Ocidente. Escreve Josué:

Este livro tem a pretensão de derrubar as muralhas que separam, praticamente, o Ocidente do Oriente, fazendo deste mundo um só. Para tanto faltam engenho e arte. Porém, se não tiver a força e a magia das trombetas do Profeta, se não for capaz de destruir as muralhas simbólicas que hoje têm o nome de Cortina de Ferro, que pelo menos sirva para tirar desse muro de indiferença uma única pedra. Só isto justificaria a veleidade de publicá-lo. Pois a fresta assim aberta daria para que duas mãos se apertassem, fraternalmente, iniciando uma era de compreensão e vontade, únicos sentimentos que ainda poderão devolver a Paz aos homens. 

No fundo, Josué quer absolver Stalin dos crimes tremendos de que, já na época, era acusado. Ao falar da Muralha da China, Josué a define como “um símbolo de defesa de um povo que, até hoje, não encontrou segurança e que sabe que nenhuma barreira material será capaz de deter a ambição de outros povos, o desejo de destruição de outras gentes. Talvez seja a Muralha, nos dias de hoje, um símbolo muito vivo para os chineses. (...) está a ensinar-lhes que só uma coisa poderá deter uma agressão: é a união de todos, o trabalho de sol a sol e um sentimento de igualdade que lhes dê força e independência”.

Em 52, Mao estava plenamente empenhado na formidável tarefa de matar chineses. Mas nada disso interessa a Josué. Em seu turismo, o autor tem a ventura de ver o Grande Timoneiro na Praça Vermelha:

Mao Tse-tung já chegou. Daqui se avista o presidente cercado de seus auxiliares e do general Chu Têh (...) Sou capaz de distinguir o seu famoso sorriso daqui de onde estou. Ambos já tiveram a cabeça a prêmio, na sede de vingança do exilado de Formosa. Pela de Mao Tse-tung, que, antes de mais nada, é um intelectual dos mais puros, foi oferecida a quantia de 250 mil dólares. 

O intelectual dos mais puros matou 65 milhões de compatriotas seus. Em Moscou, então, tudo é lindo.

O nível cultural do povo soviético talvez seja hoje um dos mais elevados do mundo. Tive grande preocupação em observar este aspecto. (...) Uma tarde, a delegação brasileira, ao deixar o Hotel Nacional, teve a atenção de todos despertada para uma aglomeração à porta de uma livraria que nós havíamos visto várias vezes. Homens e mulheres disputavam a primazia na porta e muitos outros saíam de lá de dentro empunhando um livro qualquer. Fomos nos informar do que havia. E o espanto foi tanto, para nós, brasileiros, que ninguém comentou o sucedido depois, ruminando lá as suas incompreensões e engolindo seco seu espanto. Tratava-se, simplesmente, de mais uma edição de um livro sobre filosofia, disputado de tal maneira que me lembrou episódio igual, numa banca de São Paulo, no dia em que saiu uma edição nova da revista Grande Hotel, uma cretiníssima coleção de histórias de amores mal correspondidos de mistura com a vida secreta de Hollywood e conselhos sobre a melhor maneira de encontrar um marido.

E seriam intelectuais os que tanto esforço faziam para comprar um pesado livro sobre filosofia? A resposta é negativa e verdadeira. Talvez seja difícil para nossa mentalidade compreender o interesse do operário de uma fábrica qualquer por um assunto sério, de cultura. Ou o desejo da moça que dirige um trem elétrico subterrâneo – naquele esplêndido Metrô de Moscou – em comprar um livro que trata de problemas transcendentais, fora das coisas diárias ou das estórias de casamentos frustrados. Mas para eles isso é uma coisa natural e não representa nenhum esnobismo ou atitude. 

Nenhuma palavrinha sobre as prisões de intelectuais e dissidentes, que há muito vinham sendo enviados para os gulags. Este é o tom sempre baboso do livro. Tudo é grandioso, eficaz, inteligente, tudo é esperança no futuro e no homem novo, nas observações de Josué. Nenhuma palavrinha sobre a sufocação da literatura por Zdanov. Nenhuma menção ao desastre na agricultura provocado por Lyssenko. 

Se na época os crimes de Mao eram pouco conhecidos, sobre os crimes de Stalin o autor não podia alegar desconhecimento. Pois três anos antes de sua viagem, havia estourado em Paris a chamada affaire Kravchenko, depois da qual não mais era permissível a uma pessoa informada ignorar o que ocorria na União Soviética.

Em 1949, Victor Kravchenko, alto funcionário soviético, denunciou em Paris os crimes de Stalin. Tendo trocado a URSS pelos Estados Unidos, relatou esta opção em Eu escolhi a liberdade, livro em que denunciava a miséria generalizada e os gulags do regime stalinista. O livro foi traduzido ao francês em 1947 e teve um sucesso fulminante. A revista Les Lettres Françaises publicou três artigos difamando Kravchenko, apresentando-o como um pequeno funcionário russo recrutado pelos serviços secretos americanos. Kravchenko processou a revista, no que foi considerado, na época, o julgamento do século. No banco dos réus estava nada menos que a Revolução Comunista. 

Em seu testemunho, Kravchenko trouxe ao tribunal Margaret Buber-Neumann, mulher do dirigente comunista alemão Heinz Neumann, como também o ex-guerrilheiro antifranquista El Campesino, ambos aprisionados por Stalin em campos de concentração. Kravchenko, que perdeu toda sua fortuna produzindo provas no processo, teve ganho de causa. Recebeu da revista francesa, como indenização por danos e perdas ... um franco simbólico.

A história de Kravchenko é fascinante, envolve diversos países, desde a finada União Soviética até Estados Unidos, França, Alemanha, Espanha. Seu livro rendeu-lhe boa fortuna. Levado à falência com os custos do processo, foi morar no Peru, onde investiu em minas de ouro e de novo enriqueceu. Acabou suicidando-se em um hotel em Nova York. A partir de seu processo, ninguém mais podia negar o universo concentracionário soviético. 1949 é a data limite para um homem que se pretenda honesto abandonar o marxismo.

Três anos depois, Josué Guimarães, jornalista e correspondente internacional – profissional bem informado por definição - ainda louvava a União Soviética de Stalin. 

Há um detalhe curioso em As Muralhas de Jericó. Tendo sido escrito em 1952, permaneceu inédito por meio século, só tendo sido publicado postumamente em 2001. Ora, de 52 para cá, muita água correu sob o moinho da História. Em 1956, Nikita Kruschov denunciou, no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, os crimes de Stalin.

Não era a CIA, muito menos a imprensa capitalista ocidental que os denunciava, mas o mais alto dirigente soviético. Kravchenko era um dissidente, mas Kruschov era o secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Se a affaire Kravchenko, apesar da farta abundância de provas, deixara alguma dúvida em comunistas mais testarudos, a partir do XX Congresso nenhuma dúvida mais era permissível.

Em 89 caiu o Muro e em 91 desmoronou o império tão amado por Josué. Seria mais que oportuno, para a imagem póstuma do escritor, que seu depoimento permanecesse inédito. Mas pelo jeito a viúva acreditou nas potocas do marido.

Sérgio Faraco, gaúcho e covarde - Outro gaúcho covarde é Sérgio Faraco. Em Lágrimas na Chuva, publicado em 2002, relata período de pouco mais de ano vivido pelo autor em Moscou, em 1963 e 64. 

"Depois de uma série de conflitos com chefetes políticos ligados aos partidos brasileiro e soviético" – diz-nos o editor na orelha – "Faraco foi internado em regime de reclusão, sob pesada bateria de medicamentos, numa clínica de reeducação. Era este,na época, um procedimento de rotina em relação àqueles que se rebelavam contra o ultra-esquerdismo do Partido".

Ora, quais foram os gestos de rebeldia do heróico mártir gaúcho?

Pelo que lemos em sua memória, foram basicamente duas atitudes: mantinha relações com uma russinha e insistia em escutar Wagner a todo volume em seu dormitório. Fora isso, em uma viagem à Armênia, demonstrou insólita coragem ao perguntar a um mandalete local como podiam avançar na automação do que quer que fosse, se as moradias não dispunham de vasos sanitários e as necessidades eram feitas nos quintais, em latrinas. A tradutora nem sabia o que era latrina.

Ou seja, os armênios não haviam chegado sequer ao conceito de latrina. Em função disto, o rebelde escritor foi enviado a uma clínica de reeducação, onde dispunha de quarto individual, com chuveiro e vaso sanitário (um progresso em relação à Armênia) e mais uma enfermeira que vinha pegar-lhe a mãozinha quando deprimido.

Gulag classe A, com direito a cafuné. Pra dissidente algum botar defeito. Do alto desta omissão, quarenta anos nos contemplam. Quatro décadas antes, Faraco havia sentido na carne o preço a ser pago, na União Soviética, por pequenas molecagens. Escritor, não lhe terá sido difícil imaginar o quanto custava qualquer discordância com a linha do Partido. Em idade provecta, a tardia madalena alegretense demonstra sua coragem denunciando, em 2002, fato ocorrido nos 60.


Seu depoimento, se feito na época de seu retorno, seria de extraordinário valor para sua geração. Seria o relato insuspeito de um militante comunista que, em sua viagem iniciática ao paraíso soviético, fora tratado como doente mental apenas por escapadelas a uma disciplina absurda, típica de seminários católicos. Seria oportuníssimo, logo após 64.


Erico Verissimo pergunta a Faraco se não pensava escrever sobre sua estada na União Soviética. "Respondi que, de fato, tinha essa intenção, embora minha experiência não fosse edificante. Ele ficou pensativo, depois disse que, se era assim, talvez fosse ainda menos edificante narrá-la, enquanto vivíamos, no Brasil,sob uma ditadura militar. Ele tinha razão" – diz Faraco. 

Ora, os militares lutavam para que o Brasil não virasse o imenso gulag que o futuro escritor então testemunhara. Em função de um regime que jamais o pôs na prisão, mesmo sendo comunista, Faraco silencia sobre o regime comunista que o internou em um hospital psiquiátrico, mesmo sendo comunista.

Escritor, Faraco intuiu o que Erico há muito já intuíra. Se dissesse uma só palavrinha contra a Santa Madre Rússia, adeus editoras, adeus honras literárias, adeus imprensa amiga, adeus resenhas e teses universitárias. O gaúcho de Alegrete, que não teve sequer a hombridade de despedir-se da humilde moscovita que o aquecera nos seus dias cinzas às margens do Volga, baixa a crista. 

Mas seu livro tem um grande mérito: nos revela a cumplicidade com a tirania do mais celebrado escritor gaúcho, tido como campeão da liberdade. Não por acaso, a universidade e imprensa gaúchas idolatram Erico. Covardes e omissos foram também todos os demais escritores gaúchos que, sem pertencerem ao Partido, silenciaram sobre os crimes do comunismo. Mário Quintana, por exemplo, refugiava-se em uma frase cômoda: "eu não entendo de problemas sociais". Moacyr Scliar foi premiado pela ditadura de Fidel Castro. Ou seja, estava cotadíssimo para a Academia Brasileira de Letras. E filho de Verissimo, Verissiminho é. Luis Fernando, o rebento, até hoje apóia toda ditadura, desde que de esquerda.

Falar em comunistas gaúchos e não citar Luís Carlos Prestes é ignorar o embuste maior que Porto Alegre já produziu. Embalado pelas proezas de uma coluna absurda, que se tornou famosa por suas "gloriosas" retiradas, ao refugiar-se nas margens do Prata acabou sendo contaminado pela mosca azul do poder. Treinado em Moscou, veio a mando do Kremlin fazer a "revolução" no Brasil. Deu no que deu: uma intentona ridícula e sangrenta, liderada por desvairados que de Brasil pouco ou nada conheciam. Preso e derrotado, acabou morando vários anos em Moscou. Cego e teimoso, em todo esse tempo não conseguiu ver o que Loureiro constatou em apenas dois meses. Morreu em odor de stalinismo. E ainda hoje há quem queira erguer-lhe monumentos. 

Apenas dois gaúchos, em todos os cem anos do século passado, ousaram escrever contra a barbárie. Um foi o jornalista Orlando Loureiro, que publicou A Sombra do Kremlin, editora Globo, 1954, dez anos antes da viagem do alegretense deslumbrado. O outro é este que assina este prefácio. 

Orlando Loureiro, gaúcho e corajoso - O depoimento de Orlando Loureiro, cria de Santa Cruz do Sul, foi editado pela Globo e suas reflexões são decorrentes de uma viagem à ex-União Soviética, nos meses de dezembro de 1952 e janeiro de 1953, ou seja, antes da morte do Paizinho dos Povos. E na mesma época em que Josué Guimarães girava bolsinha entre Moscou e Pequim. 

A viagem foi logo após um Congresso dos Povos pela Paz, em Viena, uma dessas reuniões em que os fiéis discípulos de Stalin pregavam a guerra. Neste encontro, entre outras cortesãs internacionais, rodavam a baiana Sartre, Jorge Amado, Pablo Neruda, Louis Aragon. De Viena, Loureiro é selecionado para ir a Moscou. Tem como companheira de comitiva, entre outras personalidades, Maria Della Costa, o que explica em boa parte sua carreira no Brasil. Ela viu de perto a tirania e silenciou. Palmas para a atriz. O mesmo não ocorreu com Loureiro. Jornalista, o autor não precisou de lupa para ver que havia uma só imprensa no mundo soviético:

Na URSS nunca existem duas opiniões a respeito de um mesmo fato ou acontecimento, porque o direito de pensar e opinar é prerrogativa apenas das elites dirigentes. O governo pensa prodigiosamente por 200 milhões de cabeças, obedientes e sub-missas dentro das fronteiras da contraditória democracia do proletariado. (...) As rotativas dessa poderosa usina geradora do pensamento comunista rodam ininterruptamente, dia e noite, para alimentar uma das mais fantásticas organizações de propaganda mundial de que se tem notícia. Essa verdadeira enxurrada de literatura marxista inunda os pontos mais remotos da terra e representa a persistente contribuição de Moscou aos seus fiéis, para as tarefas de catequese e proselitismo do proletariado universal. São milhares de toneladas de papel e tinta despejadas mensalmente na garganta anônima das grandes capitais do mundo, numa batalha obsedante pela arregimentação dos rebanhos humanos extraviados na voragem dos conflitos sociais e econômicos do nosso tempo. 


Jorge Amado, "ruidoso camelô do marxismo", como diz Loureiro, participa desta comitiva e sabe disto muito bem. Em uma visita à União dos Escritores Soviéticos, diz a Loureiro: "Na Rússia Soviética todo o trabalho intelectual é regiamente pago. As tiragens são geralmente elevadas e os escritores recebem grandes somas em direitos autorais. Há poetas que podem viver como milionários." 

Amado sabe o que quer. Loureiro prefere contar o que vê: 

A União dos Escritores funciona como um Vaticano para a moderna literatura soviética. O julgamento das obras a serem lançadas obedece a um critério estreito e sectário de crítica literária. Esta função é exercida por um conselho reunido em assembléia, que discute os novos livros e sobre eles firma a opinião oficial da sociedade. A exegese não se restringe aos aspectos literários ou artísticos da obra julgada, senão que abrange com particular severidade o seu conteúdo filosófico, que deve estar em harmonia com os conceitos da "realidade socialista" e guardar absoluta fidelidade aos princípios ideológicos da doutrina marxista. Se o livro apresentar méritos do ponto de vista dessa moral convencionada, se resistir ao crivo desse teste de eliminatória, então passará por um rigoroso trabalho de equipe dentro dos órgãos técnicos da União, podendo vir a transformar-se num legítimo best-seller, com tiragens astronômicas de 2 a 3 milhões de exemplares. E o seu modesto e obscuro autor poderá ser um nouveau riche da literatura e será festejado e exaltado e terminará ganhando o cobiçado Prêmio Stalin. 


O que explica a fortuna dos Amados e Nerudas da vida, ambos detentores do Prêmio Stalin, suas inúmeras traduções e tiragens milionárias, às custas da opressão, massacre e assassinato de milhões de seres humanos. 

Loureiro morreu em 2004, aos 85 anos, praticamente ignorado pelos gaúchos, enquanto os escritores comunistas e venais eram caitituados pela imprensa e universidade. O relato de viagens de Loureiro, um dos raros brasileiros a intuir a essência do regime soviético – outro foi Osvaldo Peralva, em O Retrato (1962) - escassamente mereceu uma segunda edição. Agora, mais de meio século depois, recebe a terceira.

Para baixar o livro de Loureiro: 

http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/sombrado.pdf

- Enviado por Janer @ 7:36 PM

sábado, 5 de dezembro de 2015

Escritores e covardes

Por Janer Cristaldo
domingo, abril 01, 2012

Assisti ontem, na Globo News, entrevista de Sérgio Faraco, concedida a Geneton Moraes Neto. Velho comunista não tem cura. Só matando. Mais de duas décadas após a dissolução da União Soviética, Faraco “ousa” denunciar o regime comunista. E relembra episódios que viveu em Moscou, em 1964. Precisou de quase meio século para abrir o bico. Em verdade, sua denúncia não é de agora. Data de 2002, quando publicou Lágrimas na chuva: uma aventura na URSS. Sua coragem é de dez anos atrás. Mas só treze anos após a queda do Muro.

Já comentei, em 2004, a insólita coragem do escritor gaúcho. O livro relata período de pouco mais de ano vivido pelo autor em Moscou, entre 1963 e 64. "Depois de uma série de conflitos com chefetes políticos ligados aos partidos brasileiro e soviético" - diz-nos o editor na orelha - "Faraco foi internado em regime de reclusão, sob pesada bateria de medicamentos, numa clínica de reeducação. Era este, na época, um procedimento de rotina em relação àqueles que se rebelavam contra o ultra-esquerdismo do Partido".

Ora, quais foram os gestos de rebeldia do heróico mártir gaúcho? Pelo que lemos em sua memória, foram basicamente duas atitudes: mantinha relações com uma russinha e insistia em escutar Wagner a todo volume em seu dormitório. Fora isso, em uma viagem à Armênia, demonstrou insólita coragem ao perguntar a um mandalete local como podiam avançar na automação do que quer que fosse, se as moradias não dispunham de vasos sanitários e as necessidades eram feitas nos quintais, em latrinas. A tradutora nem sabia o que era latrina. Ou seja, os armênios não haviam chegado sequer ao conceito de latrina. Em função disto, o rebelde escritor foi enviado a uma clínica de reeducação, onde dispunha de quarto individual, com chuveiro e vaso sanitário (um progresso em relação à Armênia) e mais uma enfermeira que vinha pegar-lhe a mãozinha quando deprimido. Gulag classe A, com direito a cafuné. Pra dissidente algum botar defeito.

Do alto desta omissão, quarenta anos nos contemplam. Há mais de quatro décadas, Faraco sentiu na carne o preço a ser pago, na União Soviética, por pequenas molecagens. Escritor, não lhe terá sido difícil imaginar o quanto custava qualquer discordância com a linha do Partido. Agora, já em idade provecta, a tardia madalena alegretense demonstra sua coragem denunciando fato ocorrido nos 60. Seu depoimento, se feito na época, seria de extraordinário valor para sua geração. Seria o relato insuspeito de um militante comunista que, em sua viagem iniciática ao paraíso soviético, fora tratado como doente mental apenas por escapadelas a uma disciplina absurda, típica de seminários católicos. Seria oportuníssimo, logo após 64.

Erico Verissimo pergunta a Faraco se não pensava escrever sobre sua estada na União Soviética. "Respondi que, de fato, tinha essa intenção, embora minha experiência não fosse edificante. Ele ficou pensativo, depois disse que, se era assim, talvez fosse ainda menos edificante narrá-la, enquanto vivíamos, no Brasil, sob uma ditadura militar. Ele tinha razão" - diz Faraco. Ora, os militares lutavam para que o Brasil não virasse o imenso gulag que o futuro escritor então testemunhara. Em função de um regime que jamais o pôs na prisão, mesmo sendo comunista, Faraco silencia sobre o regime comunista que o internou em um hospital psiquiátrico, mesmo sendo comunista.

Na entrevista de ontem, interrogado sobre porque ficou tanto tempo em silêncio, Faraco omite o fator Erico Verissimo. E alega que, na época, tinha de optar entre capitalismo e socialismo. Ora, Faraco nasceu em 1940. Ou seja, teve sete anos a mais do que eu para entender o mundo. Pertencemos à mesma geração. Eu também tinha de optar entre capitalismo e socialismo. Jamais optei pela tirania. Por mais restrições que tivesse ao capitalismo, nele não havia ditadura, opressão, gulags ou clínicas de reeducação para dissidentes.

A história se repete. Em 1929, o escritor romeno Panaïti Istrati publicou Vers l'autre flamme, primeira denúncia do stalinismo no Ocidente. Os originais deste livro levaram Romain Rolland, seu padrinho literário em Paris, a aconselhá-lo: "Isto será uma paulada a toda Rússia. Estas páginas são sagradas, elas devem ser consagradas nos arquivos da Revolução Eterna, em seu Livro de Ouro. Nós lhe estimamos ainda mais e lhe veneramos por tê-las escrito. Mas não as publique jamais". Istrati teve suas Obras Completas publicadas pela Gallimard, excetoVers l'autre flamme. Que só foi republicado, na democrática Paris ... em 1980. Volto aos anos 60, Brasil. Erico Verissimo, conivente com a barbárie comunista, repassa a Faraco o covarde conselho.

Escritor, Faraco intuiu o que Erico há muito já intuíra. Se dissesse uma só palavrinha contra a Santa Madre Rússia, adeus editoras, adeus honras literárias, adeus imprensa amiga, adeus resenhas e teses universitárias. O gaúcho de Alegrete, que não teve sequer a hombridade de despedir-se da humilde moscovita que o aquecera nos seus dias cinzentos às margens do Volga, baixa a crista. Mas seu livro tem um grande mérito: nos revela a cumplicidade com a tirania do escritor gaúcho tido como campeão da liberdade. Não por acaso, a universidade e imprensa gaúchas idolatram Erico.

A História é um lago que seca. Ao descerem, suas águas trazem à tona monstros insuspeitos. Todos os escritores gaúchos foram cúmplices da peste marxista, sem exceção. Dyonélio, por exemplo, após a evidência dos gulags, passou a escrever sobre a antiga Grécia. Tive um bom convívio com Dyonélio, paradoxalmente foi ele, materialista e marxista convicto, quem me introduziu nos estudos bíblicos. Mas quando eu queria levá-lo a falar sobre stalinismo, ele se retraía em sua concha: “Não vou dar argumentos para eles”. Ou seja, Dyonélio tinha conhecimento do que estava acontecendo. Aliás, quem não tinha?

Foi o mesmo movimento espiritual de fuga de Faraco, que refugiou-se em Urartu, na Armênia. Josué Guimarães foi caixeiro-viajante a serviço de Pequim e Moscou. Até as pedras da Rua da Praia sabiam que estes senhores eram comunistas, mas ai de quem o dissesse em público. Seria execrado como delator e expulso do rol dos vivos.

Covardes e omissos foram também todos os demais que, sem pertencerem ao Partido, silenciaram sobre os crimes do comunismo. Mário Quintana, por exemplo, refugiava-se em uma frase cômoda: "eu não entendo de problemas sociais". Moacyr Scliar foi premiado pela ditadura de Fidel Castro. Ou seja, desde há muito se preparava para entrar na Academia Brasileira de Letras, aprazível reduto de viúvas do stalinismo. Já que estamos comentando o assunto: filho de Verissimo, Verissiminho é. Luis Fernando, o rebento, apóia toda ditadura, desde que de esquerda. Apenas dois gaúchos, em todos os cem anos do século passado, ousaram escrever contra a barbárie. Um foi o jornalista Orlando Loureiro, que publicou A Sombra do Kremlin. Procure nos sebos: editora Globo, 1954, dez anos antes da viagem do alegretense deslumbrado.

O outro é este que vos escreve, que tem denunciado o marxismo desde os dias em que Faraco passeava pelas ruas da nova Jerusalém.