Prova aplicada no fim de semana passado tinha desequilíbrio no elenco de autores citados e propôs questões claramente enviesadas
- Gazeta do Povo
Texto publicado na edição impressa de 29 de outubro de 2015
Já se tornou hábito, ano após ano, a busca por indícios de viés
ideológico no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Não se trata de
paranoia: não são poucas as questões de exames anteriores que pareciam
feitas para induzir os alunos a oferecer respostas de acordo com certa
ideologia para conseguir melhores notas. Neste ano não foi
diferente: logo no primeiro dia de exame, no sábado passado, várias
questões foram apontadas como enviesadas, e a polêmica cresceu no
domingo, com o assunto escolhido para a redação.
As críticas ao tema da redação, no entanto, nos parecem um tanto
exageradas. Não há motivo para que a violência contra a mulher não fosse
abordada na redação de uma prova como o Enem, ainda mais à luz dos
números apresentados como subsídio para a atividade. No entanto, pode
haver margem para manipulação ideológica dependendo dos critérios de
correção adotados. Supondo o caso de dois estudantes que demonstrem
igual domínio do idioma e capacidade de argumentação, seria totalmente
impróprio dar nota maior àquele que compusesse seu texto adotando as
chaves marxistas de “opressor/oprimido”, culpando a “sociedade
patriarcal” pela violência contra a mulher, e uma nota menor ao
candidato que enfatizasse a responsabilidade individual do agressor e
criticasse a objetificação da mulher promovida por determinadas
manifestações culturais contemporâneas que um certo multiculturalismo
obriga a aceitar como legítimas. Mas isso é algo que independe do tema
em si proposto para a redação: depende das disposições dos corretores e
daqueles que orientam seu trabalho, e o resultado só tem como ser
avaliado a posteriori, após cada estudante conhecer sua nota no exame.
O conjunto dos elaboradores de provas como o Enem é um microcosmo do mundo da educação nacional
É olhando os cadernos de questões objetivas que se encontram
sinais mais preocupantes. Uma pergunta sobre o movimento feminista nos
anos 60 traz consigo uma citação de Simone de Beauvoir que pode ser
interpretada como defesa explícita das teorias de gênero rejeitadas por
Legislativos em todo o país, nos três níveis, mas que o MEC insiste em
promover. Um texto do geógrafo de esquerda Milton Santos é usado como
base para uma questão cuja resposta considerada correta leva o estudante
a concluir que uma consequência da “globalização perversa” é o “aumento
dos níveis de desemprego”. Os movimentos sociais são exaltados em uma
questão que usa como base um texto de Maria da Glória Gohn, entusiasta
do MST e que, nos protestos de 2013, afirmou que os vândalos black blocs
representavam a “resistência”. Uma citação de Slavoj Zizek, um dos
novos teóricos da “violência revolucionária”, é usada para igualar a
ação militar norte-americana no Afeganistão ao terrorismo dos
extremistas islâmicos. A crise econômica brasileira atual é ignorada,
mas a crise mundial de 2008 – aquela que está na raiz de todos os nossos
problemas, a julgar pelo que diz a presidente Dilma Rousseff – é
mencionada em uma questão. O mercado e o capitalismo são apontados como
causa de uma “polarização da sociedade chinesa” e descritos com viés
negativo em uma das questões. Outra citação defende que não havia
distinção nenhuma entre a arte produzida pelos europeus e a arte dos povos do Novo Mundo.
Todas essas são manifestações de um pensamento de esquerda, sem falar
da desproporcionalidade verificada quando se analisa todos os autores e
publicações usados na prova de “ciências humanas e suas tecnologias”.
Não se questiona a presença desses autores no exame; o ideal é que o
conjunto das questões ofereça ao candidato uma visão abrangente das
ideologias mais expressivas no mundo atual. O problema aparece quando os
representantes de uma ideologia específica são citados com muito mais
frequência que os demais. Os poucos autores clássicos ou liberais
citados no Enem 2015, como David Hume ou Tomás de Aquino, foram
soterrados por uma profusão de autores como Slavoj Zizek, Milton Santos,
Simone de Beauvoir ou Paulo Freire.
O conjunto dos elaboradores de provas como o Enem é um microcosmo do
mundo da educação nacional. A maneira definitiva de despir completamente
o Enem de um viés ideológico de esquerda seria alterar a composição de
forças entre os educadores – uma tarefa ingrata, já que o socialismo de
matriz gramsciana vê a educação como uma fortaleza que se deve manter a
todo custo na construção da hegemonia política. Mas, enquanto o
equilíbrio não se concretiza, é fundamental a vigilância de pais, alunos
e da sociedade como um todo, denunciando os excessos e lutando por uma
educação que não seja mero veículo para a doutrinação ideológica.
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