quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Quando a esquerda vai à Cuba

*Percival Puggina

É uma encrenca. Tenho visto muita gente de esquerda opinar sobre Cuba após uma viagem àquele país. Há os que, afetados por esclerose múltipla, de etiologia marxista, não entendem o que veem e proclamam que voltaram do paraíso. Outro tipo segue a linha daquela senhora que entrou em mutismo até desabafar, sob pressão dos familiares: "Tá bom. Aquilo é uma droga, mas não posso ficar dizendo, tá?". Tá, senhora, eu a entendo, apesar de, pessoalmente, não considerar aquilo uma droga. Droga é o regime. O povo cubano, submetido ao arbítrio e aos humores de uma ditadura que já leva mais de meio século, é um povo desesperançado. E há opiniões ainda mais notáveis, que se proporcionam quando o esquerdista que vai a Cuba é uma liderança política. Instado a opinar sobre o que viu, a celebridade tem que responder ao repórter.

Se fizer críticas ao regime estará, perante os companheiros, incorrendo em grave sacrilégio. Apontar mazelas cubanas é o equivalente ideológico de cuspir na cruz e chutar a santa. Coisa que não se faz mesmo. Durante meio século, a esquerda desenvolveu toda uma mística em torno da Revolução Cubana, dos "elevados valores morais" do bandido Che Guevara e das qualidades de estadista que ornam com fulgurantes e imperceptíveis realizações a figura mitológica de Fidel Castro. Se o sujeito retornar de Cuba descrevendo o que necessariamente passou diante de seus olhos cairá na mais negra e sombria orfandade política. É uma encrenca.

Por outro lado, se não disser que há um regime totalitário instalado no país, que só existe um partido político, que não há liberdade de opinião, que os meios de comunicação são órgãos do governo ou do partido comunista, que há um rigoroso controle da sociedade e da vida privada pelo Estado e que persistem as prisões políticas, o sujeito se desqualifica como democrata perante as pessoas de bom senso porque esses fatos são irrecusáveis. É uma encrenca.

Pois foi nessa encrenca que se meteu o governador Tarso Genro quando decidiu passar uns dias de férias na ilha dos irmãos Castro. As perguntas lhe vieram, em primeira mão, do portal Carta Maior, órgão quase oficial dos companheiros do governador. O inteiro teor da entrevista pode ser lido em www.cartamaior.com.br ou, em short link, aqui: http://bit.ly/yPek9J.

Como fez o governador para sair dessa? Atacou o suposto bloqueio norte-americano à Ilha, claro. No entanto, até os guindastes do Porto de Mariel (onde o BNDES está financiando um investimento de US$ 600 milhões) sabem que não existe bloqueio a Cuba. Bloqueio seria uma operação militar impedindo a entrada e saída de navios. O que existe é um embargo pelo qual os Estados Unidos pretenderam restringir as operações comerciais com a Ilha. No entanto, esse embargo está totalmente desacreditado há muito tempo. Os principais importadores de produtos cubanos são, pela ordem, Venezuela, China, Espanha, Brasil e Canadá. E os principais exportadores para Cuba, são, também pela ordem, Venezuela, China, Espanha, Canadá e Estados Unidos (é sim, 4,1% das importações cubanas são de bens de consumo made in USA). E não me consta que qualquer desses países mencionados, Brasil entre eles, sofra restrição comercial por parte dos Estados Unidos. Aliás, China e Venezuela destinam aos ianques respectivamente 18% e 38% de suas exportações e neles buscam respectivamente 7% e 27% de suas compras. Que terrível bloqueio americano é esse? Por outro lado, Cuba importa US$ 11 bilhões e exporta apenas US$ 4 bilhões. Não é por causa do embargo que as exportações cubanas são insignificantes. É porque - isto sim! - sua economia estatizada quase nada produz. Com um déficit comercial desse tamanho, o BNDES que se cuide, dona Dilma.

Sete vezes, na entrevista, o governador usou o anti-americanismo como forma de tergiversar sobre os males que o regime impõe ao país onde passou as férias. Tarso, na entrevista, estava sendo interrogado sobre Cuba por um jornalista companheiro. E batia nos Estados Unidos, enquanto surfava sobre o fato de que se há um bloqueio em Cuba, ele é o bloqueio imposto pelo governo à população, esta sim, impedida, sob força policial e militar, do fundamental direito de ir e vir.

Por fim, sobre a questão da democracia, o governador saiu-se com esta preciosidade: "A questão democrática em Cuba não pode ser avaliada com os mesmos parâmetros que servem para o Brasil, para a Argentina e para o Uruguai, por exemplo." Não, não pode mesmo. Se for avaliar a questão democrática em Cuba com conceitos abstratos e imprecisos (apesar de universais) como, digamos assim, eleições livres, pluralismo partidário, liberdade de expressão e de imprensa, aí a coisa fica complicada. A democracia cubana tem que ser avaliada sob conceitos de partido único, liberdades restritas, inexistência de oposição e estado policial. Viram como é uma encrenca?

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* Percival Puggina (67) é arquiteto, empresário, escritor, titular do site www.puggina.org, articulista de Zero Hora e de dezenas de jornais e sites no país, autor de Crônicas contra o totalitarismo; Cuba, a tragédia da utopia e Pombas e Gaviões

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