quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Pessoas certas

Certas pessoas nos inspiram, por isso registro. Leia e descubra.
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Dodge Charger RT alaranjado. Largas faixas pretas davam o toque para combinar com as robustas rodas cromadas. Uauuu! É só lembrar e viajo no dojão. Eram viagens e viagens, Antonina, Morretes, Paranaguá, Matinhos, Caiobá entre outros confins que nem me lembro. Gatas e gatas. Loiras, morenas, negras, amarelas ou da cor que pintasse. Dias. Noites. Faça chuva. Faça sol. Nossa turma envolvida em aventuras contaminadas pelos desejos dos hormônios em ebulição. Não havia limites, se tivesse gasolina e uns trocados. Lá seguíamos. Lá íamos. Rumo ao paraíso destinado aos pobres mortais. Era na praia, no camping, no sarau ou em qualquer evento, desde o simples rodeio até as badaladas procissões.
Na verdade, a curtição era embarcar no dojão e vibrar com as peripécias do Piloto. Esse era o apelido do motorista que além de "expert" em manobras automibilísticas era um brigão de primeira linha. Adorava confusão. Provocava qualquer um. Fosse quem fosse. Se contrariado partia para as vias de fato. Acreditava fielmente na potência de seus golpes. Algumas vezes presenciei cenas que me constrangeram, pois aquilo não é do meu feitio. Esbarrava nas pessoas afrontando-as, em seguida pedia explicações pelo ato praticado. Os inteligentes percebiam a má intenção e pela tangente escapavam ilesos. Já os afoitos caiam na armadilha de aceitar tal provocação e partiam para o ataque que não ia além de dois golpes, o homem era certeiro... um manotaço no queixo e lá desabava o ingênuo a nocaute.
Ninguém da turma ousava repreendê-lo. Pois apesar dos pesares, mostrava-se uma pessoa de agradável convivência. Era alegre, inteligente, cooperativo e super leal aos amigos. Prestativo aos extremos, se alguém precisava de um favor recebia o simpático sim.
Como no dia em que uma garota lhe pediu que encaminhasse para exames de rotina a avó que residia num sítio próximo. Convidou-me e seguimos por picadas que não passava nem cavalo. Depois de alguns quilômetros de buracos desviados, ajeitamos a velha no banco traseiro e retornamos para completar a missão.
Estávamos eufóricos, pois era mais uma aventura com o dojão. E a cada piada que eu soltava, vertiam gargalhadas estridentes que pareciam não incomodar a vó cujo silêncio delatava não achar graça nas brincadeiras. Nesse astral, rumamos na velocidade ao gosto do pé de chumbo do meu camarada. Até que próximo do destino as ruas estreitas nos obrigaram a reduzir a marcha ao dobrar uma esquina. E por um triz quase acertamos a traseira dum fusca rodando muito lentamente, quase parando. Era um casal entre beijos e abraços. Piloto prosseguiu uns trinta metros acelerando forte e dando sinal de luz, queria forçar o ritmo, pois era impossível ultrapassar.

Foi ignorado pelos namorados, aí então ele meteu a mão na buzina e começou a xingá-los. O rapaz colocou o braço para fora e fez aquele famoso gesto passa por cima. Meu amigo não vacilou, abriu a porta com a disposição de quem vai resolver a vida no tapa. E seguiu a passos largos gritando para descer o motorista que acatou a ordem ao desligar o motor. Piloto ainda transtornado vociferava filho disso e daquilo tão alto que atraiu a atenção da vizinhança que postada nas janelas presenciaram-no com a mão sobre a porta encarando o desafeto. Gesto que provocou um silêncio aterrador, até ser rompido pela voz do outro esbravejando continuadamente: diga agora quem é o corno, diga se você é macho, vamos lá, repita, quem é corno? seu fdp!

Piloto paralisou, nem piscava. Assustado reparei um revólver muito perto de seu rosto. Estremeci e imaginei que aquilo era prenúncio de tragédia. Mas pela primeira vez o valentão resolveu ficar calado enquanto ouvia um desfilar de desaforos e palavrões. Foram dois longos minutos e marcantes em minha vida. Acredito que para ele também, pois daquele dia em diante a paz invadiu-lhe. Virou um apaziguador, nunca mais se descontrolou da maneira que até então lhe fora peculiar. Para aqueles que o instigavam em seus atos insanos virou bunda-mole. Entretanto, para os amigos que lhe eram afetos, tais como eu, transformou-se numa inestimável pessoa.

Passado algum tempo perguntei-lhe do ocorrido. Serenamente disse-me que no momento em que a arma passeava pela sua face, percebeu que não merecia sair desta vida tão estupidamente. E caso se livrasse da enrascada lutaria para ser alguém diferente. Posso ser louco, mas burro com certeza não! - finalizou.
Essas foram algumas das últimas palavras que trocamos há décadas. Semana passada recebi um telefonema dando-me conta de sua passagem para o andar de cima, além de relatar que se tornara um dedicado professor que por quase trinta anos atuou junto a grupos de jovens envolvidos com drogas e violência. Ele conseguiu. Gracias!
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