domingo, 28 de agosto de 2011

Heitor encontra Nietzsche

Heitor lê bula de medicamentos, classificados e até as etiquetas das roupas de sua esposa. Desde que aprendera, sua vida era ler e ler cada vez mais. Sem nutrir algum interesse especial, era um eclético, lia o que mais estava próximo de seu dia-a-dia. Quando estudante dedicou-se de corpo e alma à leitura das obras indicadas pelos professores e àquelas descobertas durante suas tardes na biblioteca. Um assunto trazia outro, era como puxar o fio da meada, iniciava estudando geografia para em meio à pesquisa surgir algo histórico que lhe chamava atenção e lá ia, do rio Amazonas às paginas de Euclides da Cunha em Os Sertões.
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Certo dia, na volta da escola, tropeçou em algumas revistas largadas na calçada e descobriu ali a maneira de manter-se em dia. Revirar as lixeiras que encontrava pelo caminho. Uuauuu!!! foi um achado e tanto - suspirava. Por isso, muitas vezes suportou piadinhas quando algum colega encontrava-o vasculhando latas. Considerava tais eventos detalhes que não lhe abateriam a determinação em conseguir mais alimento para o espírito.
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Após a garimpagem, chegava em casa com a mochila maior do que saíra – recheada com os troféus conquistados. Examinava-os um a um. Eram revistas, livros, jornais entre outras publicações consideradas lixo para alguns, mas para ele matéria nova a ser pesquisada - já reciclava por instinto.
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Recortava os anúncios que considerava interessantes e colava-os em um caderno – construía sua enciclopédia personalizada. Era sua admiração pela forma dos apelos apresentados naquelas mensagens que o instigava a guardá-las com carinho. Nunca se perguntou para que serviriam. Eram por si só presentes para a imaginação.
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Dos jornais recortava os anúncios dos filmes que assistiria nas tardes de Domingo, ao lado tecia sua resenha, descrevendo a história dos personagens, dos efeitos especiais e às vezes alguma curiosidade sobre os artistas. Era sua paixão pela leitura dando asas às formas de praticar o ato. As revistas e os livros amassados ou em estado precário eram restaurados. Uma a uma, as folhas eram tratadas com carinho; ajeitava-as com o mesmo capricho de quem prepara o traje da formatura, algum remendo aqui outro ali e o exemplar voltava-lhe apetitoso. Quem quer dá um jeito, pensava ele.
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Certa vez encontrou alguns livros cujo texto estava numa língua esquisita, difícil de entender - o que seria?!. Na biblioteca descobriu que eram da "Rússia"; não tinha como ler, mesmo assim ficou com pena de jogá-los fora; na verdade não tinha coragem de livrar-se de algo que sabia ser valioso, pelo menos para alguém que conseguisse entendê-los. Guardou-os até o dia em que resolveu encaminhar à embaixada. Escreveu um pequeno bilhete contando as aventuras daqueles volumes, por onde andavam e quem os havia encontrado; fechou-o junto aos exemplares e lá foi pelo correio sua remessa.
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Alguns meses após, recebeu uma mensagem de agradecimento acompanhada de um livro do escritor alemão Friedrich Nietzsche cujo conteúdo era a tradução daqueles que encontrara. Heitor não se fez de rogado e logo pôs-se a degustar tal obra, devorou-a do inicio ao fim; uma, duas e outras tantas vezes. Para em suas páginas assinalar de forma enfática com caneta vermelha o seguinte trecho: "A palavra é encantadora loucura: com ela o homem dança com todas as coisas."
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Eram citações como essa que lhe inflamavam, impulsionando-o em sua jornada através das leituras advindas das mais variadas fontes e ocasiões. Essa era a vida do Heitor, garimpar oportunidades, aprendeu que uma coisa puxava outra. Devido à  curiosidade de mexer no lixo, encontrou mais elementos para aplacar sua paixão, abriu caminho para conhecer o pensamento do filósofo alemão que há mais de um século consegue despertar o interesse de muitos ledores pelo mundo afora. Foi nessa época, por coincidência ou não, que angariou o apelido que ainda carrega, Heitor o leitor.
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Onde chega e é reconhecido, lá vêm as brincadeiras de Heitor o leitor. Já leu hoje heitor?. O que você sugere para eu ler? Brincadeiras que não lhe incomodam, muito pelo contrário, certo ou errado, tem a consciência do papel que a vida lhe reservou: um eterno aprendiz.
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Hoje, após décadas, continua em sua sina diariamente; só que em vez de procurar nas lixeiras da rua, é na internet que navega na expectativa de fisgar, em meio ao oceano de letras, sustento para sua paixão: a leitura.

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