quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Ex-padre Valdo

Gilrikardo disse: Conheci o ex-padre Valdo de vista como se diz, frequentávamos a mesma lan house, trocamos meia dúzia de palavras. Isso por si só, deixou-me triste quando soube de sua morte no México. Mas é a vida... abaixo o resgate da bicicleta e alguns registros dos últimos dias do padre...

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Valdo em sua passagem pela Costa Rica


Amigos trazem para Joinville a bicicleta do ex-padre que morreu quando cruzava as Américas com ela

Desafio agora é reativar o Museu da Bicicleta, onde o material de Valdo pode ter a atenção que merece

Carlos Junior/ND
Valdo dizia que quando chegasse aos Estados Unidos ficaria famoso. A rede de televisão CNN acompanharia sua passagem pela terra do Tio Sam. Não que a fama fizesse sua cabeça, mas queria divulgar a expedição “Pedalando pela Paz”, que começara onze meses antes, em Joinville. A missão era levar mensagens pacíficas a 72 países, alguns deles em conflito, como a China, Índia e outros do Oriente Médio. Quis a vida que ele desse as últimas pedaladas no México, a menos de 600 quilômetros da fronteira com os EUA.

Como valorizava mais o espírito que o corpo, antes de partir para a sua maior viagem, deixou claro que se por ventura morresse no meio do caminho, não seria necessário gastar fortunas para transladar seu corpo ao Brasil. Podiam deixá-lo lá, onde quer que fosse. E assim o foi. Após 11.689 quilômetros pedalados – seriam 50 mil km´s ao redor do planeta –, ele descansou em sua barraca, naturalmente. Localizado no dia 23 de fevereiro de 2011, acabou enterrado numa cova simples, na localidade de Punta Prieta, em Baja California, México.
Somente quando seus amigos joinvilenses Marisa e Valdecir Schiochett chegaram ao país dos sombreiros, no final do mês passado, uma placa com o nome do ex-padre Valdecir João Vieira, o Valdo, identificou sua sepultura, para que outros cicloturistas do mundo pudessem visitá-lo e lembrar de suas aventuras ao redor do planeta a bordo de sua fiel companheira, a “Tanajura”, que recebeu o apelido carinhoso por conta da forma exótica de seu bagageiro. Passados quase dois anos após a morte do expedicionário, ao menos a bicicleta está de volta a Joinville.
Um amigo inesquecível
O ex-padre Valdo nasceu em Araquari, em 1944, bem pertinho de Joinville. Dali desbravou seus dias, conhecendo lugares e fazendo amigos por onde passou. Entre eles estão a professora Marisa e o analista de sistemas Valdecir, que viam o aventureiro “como um irmão mais velho, que brinca, ri”, que entrou e saiu de suas vidas por acaso.
Como completou 25 anos de casamento, o casal decidiu comemorar de forma diferente. Era hora de visitar o “túmulo” do amigo e resgatar a “Tanajura”. Afinal, eles viveram a aventura de Valdo dos preparativos até a partida. A idéia era sair no dia do aniversário de Joinville, mas o ciclista acabou saindo uma semana depois. 
Valdecir e seu filho Lucas, então com 18 anos, chegaram a pedalar junto com Valdo até o posto Rainha, em Araquari. De lá, ele seguiu sozinho, pedalando sentado na confortável “Tanajura”, modelo “cruzer bike”, importada dos Estados Unidos, que permite pedalar sentado, com as pernas esticadas para frente.
Pelo roteiro original, Valdo subiria até o Alaska e de lá iria para a Europa de avião. Depois de percorrer o continente europeu, contornaria o Norte da África, passaria pela Ásia e Oceania e retornaria à América do Sul para completar o roteiro. Mas a viagem acabou na localidade de Baixa Califórnia.
“Ele dizia prá gente: quando eu morrer, onde eu cair, me deixa. Meu corpo deixa para os urubus. O que importa é o espírito”, relata Marisa, informando que a família do ex-padre bem que tentou resgatar seu corpo, mas o translado custaria cerca de R$ 40 mil. Assim, ficou por lá, como era seu desejo.
A saga
Mas restava uma dúvida: o que fazer com a bike? Depois de muitos planos, o casal finalmente se decidiu a cumprir seus desígnios. “Nossa missão era resgatar a Tanajura”, diz a professora, informando que saíram dia 20 de novembro rumo ao México.
Foi graças aos amigos que Valdo mantinha nas redes sociais que a viagem ao México tornou-se possível. Um deles, Felipe, recepcionou e ciceroneou o casal por um bom trecho, o qual Marisa e Valdecir chamam de “a saga da Tanajura”.
Felipe levou o casal à Cidade do México e à Basílica de Guadalupe, onde o ex-padre teria dito que poderia morrer feliz, após pedalar ao redor do templo. Lá, os Schiochet receberam o rosário e o capacete de Valdo, além de uma imagem da santa Guadalupe.
Depois, seguiram a Tijuana para encontrar o “anjo” Rogério, outro amigo que os levou até a localidade de Ensenada. A bicicleta estava protegida na Casa Del Ciclista, onde um altar foi montado em homenagem à aventura de Valdo.
Como a casa seria vendida, não haveria onde guardar a bike. Mais um motivo para o casal buscá-la, antes que se perdesse pelas terras mexicanas. Com a ajuda de Rogério, alugaram uma van para o embarque.
Já com a magrela, dormiram na casa dos tios de Rogério, que preparou Tacos mexicanos para o casal, num restaurante que fica em anexo com a oficina onde a Tanajura foi desmontada e encaixotada para a viagem de volta ao Brasil.
“E eu pensava: cadê a vigilância sanitária. Mas é a cultura deles”, comenta Marisa, que se surpreendeu com a proximidade da graxa com a comida.
Gentileza
Durante toda a viagem Valdecir controlou os ímpetos consumistas de Marisa. Não deixou comprar quase nada, para não dar excesso de bagagem, considerando o peso da Tanajura. Nem um sombreiro ele deixou comprar.
Valdecir estava realmente preocupado com o transporte. Como carregaria a bicicleta pelos aeroportos? Chegou a comprar cordas para fazer alças nos caixotes. Mas a preocupação foi desnecessária. Para sua surpresa, a Tam providenciou todo o translado.
Quando chegaram em Guarulhos, a bike ainda não havia chegado. Depois de um pequeno apavoro, foram informados que no dia seguinte a bicicleta estaria na casa do casal, no Guanabara, em Joinville. E não é que a companhia cumpriu a palavra?
Com a Tanajura seguramente guardada em sua casa, juntamente com outras quatro bicicletas que pertenciam a Valdo, o casal pretende iniciar um movimento para reativar o Museu da Bicicleta de Joinville, para poder preservar a história do aventureiro.
Homenagem
Se vivo estivesse, padre Valdo estaria com 68 anos, provavelmente pedalando em algum lugar inusitado, como Ushuaia, extremo Sul da América Latina, o legítimo fim do mundo ou por alguma salina Argentina – “salar”, como hablam los hermanos -, com grandes chances de estar nu, como manda a tradição da travessia. Sim, ele era dono de uma alma libertária e assim viveu seus dias, sempre com um sorriso no rosto e uma educação de cavalheiro.
Um de seus amigos cicloturistas, que se identifica como Edilson Trekking relatou na internet que um dia antes de morrer, Valdo tinha pedalado cerca de 63,75 km, conforme seu diário. “Era um homem probo, reto, educado e livre. Todos os dias agradeço a Deus por ter conhecido este homem que gostava de aventura”, diz o amigo.
“Dia desses degustei um vinho na varanda. Disse para minha esposa Fernanda que toda vez que faço isso, lembro-me de Dom Valdo. Não esqueço quando o conhecemos. Ele chegou e pediu para armar a tenda no quintal da casa dos meus pais, mesmo tendo um quarto disponível. E, quando partiu para Joinville, meu pai o abraçou e chorou”, lembra Edilson.
Segundo discursa, “os cicloturistas brasileiros podem ter orgulho desse homem, que por onde passou, deixou palavras de paz, seja no Paraguai, Argentina e em todos os outros países por onde ele passou. Ao todo foram cerca de 40, entre eles Moçambique, enquanto ainda era padre, onde realizou 18 enterros no mesmo dia, todos vítimas de mortes violentas. A tristeza foi tal, que ele decidiu abandonar a batina e seguir o vento.
“A maioria dos homens quer viver na terra para ser servido ou bajulado, se assentar em tronos de ouro, mansões, palácios. E outros para desbravar, andar no meio do povo, para ir aonde muitos não foram, para sentir a liberdade do sol na cara, da chuva, do orvalho da manhã, do nascente ao poente, do mar às montanhas, das aldeias às favelas, numa passeata por direitos civis. Somente o aconchego do lar não o satisfaz”, diz o amigo.
A correspondência fatídica
Abaixo, o último email que o ex-padre e amante da natureza enviou aos amigos que acompanhavam sua aventura:
Caríssimos amigas e amigos!
Estou na Baixa Califórnia e cheguei a Guerreiro Negro.
Atualizei o diário com as últimas notícias.
Só faltam pouco mais de 600 km para entrar na terra do Tio Sam.
Abraços!"