quinta-feira, 23 de junho de 2011

Dica de leitura > www.brasiliana.usp.br

Referido site traz um acervo interessante, dentre os livros antigos que baixei, transcrevo uma história:

ANACREONTE

LIVRO DA INFÂNCIA

Francisca Julia da Silva
1899
http://www.brasiliana.usp.br/

Em Téos, na Grécia antiga, havia um poeta que se chamava Anacreonte. Era velho, tinha os cabelos inteiramente brancos e as barbas aneladas e longas, que lhe cobriam o peito e lhe davam um aspecto simpático e venerado.

Era o homem mais feliz que havia. Como todos o amavam e o distinguiam com uma admiração sem limites, nada lhe faltava. Sua habitação ficava à beira do mar, cujas ondas, na enchente, vinham até á sua porta, quebrando-se em espumas alvas. Pela manhã, mal a aurora tinha nascido, as camponesas de Téos vinham em grupo trazer ao poeta o sustento do dia. Uma trazia um cântaro de barro cheio de leite gordo. Outra um púcaro de saboroso vinho espumante e frutas de todas as qualidades. Outra ainda um vaso de água pura para as abluções matinais do poeta. Depois untavam-lhe as barbas e cabelos com óleos aromáticos, perfumavam-lhe os pés com mirra e sândalo, e esperavam, sentadas no chão, os agradecimentos do velho.

Anacreonte ficava em pé, majestoso na sua inspiração poética, e, com largos gestos e voz grave, ia cantando as odes que tinha composto durante a noite, fazendo-se acompanhar a uma lira de prata, cujas cordas desferiam os mais melodiosos acordes. As raparigas saiam em seguida e atravessavam o campo em direção às suas casas, cantando as odes do poeta com suas vozes juvenis.

Os camponeses, que não podiam ir fazer ao velho a visita matinal, porque os impedia o trabalho da lavoura, a criação das ovelhas e o fabrico do vinho, contentavam-se com vir ao encontro das moças, para ouvir dos seus lábios as últimas composições de Anacreonte.

Assim vivia ele, absolutamente feliz, querido e admirado por todos, preocupando-se apenas com seus versos, indiferente a outros afazeres. Policrato, porém, tirano de Samos, curioso por conhecer o poeta, ouvir-lhe dos próprios lábios a poesia das suas odes, mandou chamá-lo.

Anacreonte, uma bela manhã, sobraçando a sua lira de prata encordoada de novo, com sua túnica de púrpura presa aos ombros, uma coroa de pâmpanos e heras em torno afronte, embarcou numa galera, e partiu mar afora. Policrato tinha ordenado que se preparasse um banquete real para festejar-lhe a recepção.

Anacreonte apareceu. Todos os que estavam ao redor da mesa, onde se ostentavam as mais extraordinárias iguarias, levantaram-se com as taças transbordantes e gritaram:

— Evohé! — que era o grito de satisfação dos gregos.

Anacreonte, então, em pé no meio dos convivas, admirável na sua roupagem de púrpura, empunhou o instrumento sonoro, arrancou um acorde e começou a entoar um hino de louvor a Policrato. Seus versos eram tão belos, tão inspirados, sua voz tão clara, que todos estavam suspensos de admiração, embriagados de poesia. Policrato aproximou-se do poeta, curvou-se em sinal de admiração ao seu gênio, deu-lhe uma bolsa cheia de moedas de ouro, e disse-lhe:

— Toma esta bolsa. É tua. Contém uma fortuna. Quero que sejas o homem mais poderoso de Samos. Amanhã cantar-me-ás uma ode igual a essa.

Anacreonte agradeceu. À noite, quando se retirou para os seus aposentos, começou a pensar na fortuna que lhe pertencia, nas terras que havia de comprar à beira mar, plantadas de vinha, nas ovelhas brancas pastando pelos outeiros no cortejo de escravos que havia de ter, na felicidade, enfim, que lhe dariam aquelas pesadas moedas de ouro. E não pode dormir, tal era a satisfação de que se achava possuído. Pela manhã tinha um aspecto doentio, os olhos amortecidos. Procurou Policrato e disse:

— Senhor! aqui está a vossa bolsa e o ouro que ela contém. Não a quero. Desde que a poesia bafejou minha alma, ainda se não passou uma noite em que não compusesse uma ode. Ontem, porém, a riqueza que me destes preocupou tanto minha imaginação, que não consegui dormir nem compor a ode que me pedistes. Adeus. Quero partir para Téos, pobre como vim, porém feliz na minha pobreza. Para que servem fortunas? Nada me falta. Tenho o bom leite, o excelente vinho, a água fresca para as minhas abluções e a amizade dos meus vizinhos. Esta é a minha riqueza. Adeus.

Post Scriptum: Em dias de febril consumismo, será possível encontrar algum Anacreonte por aí? Me avisem!

VOCABULÁRIO: 1 Aneladas, em feitio de anéis; enroladas. 2 Venerado, que se deve venerar; digno de respeito. 3 Cântaro, bilha, vaso de barro de boca larga. 4 Púcaro, vaso por onde se bebe água. 5 Ablução, ato de lavar-se; lavagem. 6 Unciar, esfregar. 7 Mirra, planta e gomina aromática. 8 Sândalo, árvore de madeira perfumosa. 9 Ode, composição poética. 10 Tirano, príncipe cruel. 11 Sobraçar, levar debaixo do braço. 12 Túnica, vestidura talar. 13 Púrpura, marisco donde se tira a cor vermelha, vestimenta. 14 Pâmpano, ramo de vide vestido de folha. 15 Hera, arbusto conhecido. 16 Galera, navio de três mastros. 17 Ostentar-se, mostrar-se com orgulho. 18 Empunhar, tomar pelo punho; segurar. 19 Outeiro, coluna, monte pequeno. 20 Cortejo, comitiva, acompanhamento.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Se preferir utilize o email: gilrikardo@gmail.com