terça-feira, 27 de setembro de 2011

Fragmentos

Chove, estamos no outono, é quando os dias parecem transformar minhas sensações em melancolia ou será apatia? ou porcaria? ou cacofonia?
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Nesse clima de total conspiração, caminho por entre becos estreitos e ruas alagadas, procurando pisar nas pedras mais salientes – pareço brincar de amarelinha. Rumo ao encontro do amigo que há tempos não confabulo - o Fernando. Mora sozinho em um pequeno quarto. Espaço suficiente para uma cama, uma mesa, duas cadeiras e um pequeno armário. Leva a vida entre a solidão e as letras, há muito que seu mundo mesclou-se entre o imaginar/sonhar e a rotina anestesiada de um simples mortal. Perambula na tênue divisa entre o aqui e o acolá.

Será em que lado insiro-me?

Talvez o velho Pessoa me tenha uma forma imaginária de relacionamento ou quem sabe, de verdade verdadeira, reconhece-me como um amigo que pouco importa-se a que destino a vida nos encaminhou. Quando em sua presença, trocamos idéias, questionamos conceitos, tentamos reinventar a roda. É um excitante roda moinho vicioso: pensar o quê e por quê pensar? Assim passamos tardes e às vezes até noites entretidos entre uns e outros dramas existenciais.

- A que categoria de seres pertencemos Fernando?
(Fernando) - ... a literatura é a maneira mais agradável de ignorar a vida ? (*)
- Puxa! Como sempre, és um dúbio provocador. E por que literar não inclui-se em um ato de viver, se viver são as emoções tanto satisfeitas quanto reprimidas, compreendidas ou não. È a busca do prazer ou desprazer que a poucos manifesta-se através dessa ignorância.
(Fernando) - Sou, em grande parte, a mesma prosa que escrevo. [...] Tornei-me uma figura de livro, uma vida lida. O que sinto é (sem que eu queira) sentido para se escrever que se sentiu. O que penso está logo em palavras, misturado com  imagens que o desfazem, aberto em ritmos que são outra coisa qualquer. De tanto recompor-me destruí-me. De tanto pensar-me, sou já meus pensamentos mas não eu. (*)

Entre um diálogo e outro ele acendia um cigarro cuja fumaça flutuava descrevendo figuras aleatórias que prendiam sua atenção. Ficava absorto, como se viajasse junto com aquelas construções ilegíveis que subiam até sumirem por entre as frestas do forro carcomido pelo tempo.

Eu ali, querendo decifrar onde nossos mundos tocavam-se. Ao tempo que a presença dele de maneira insistente provocava em mim devaneios que alimentavam meus sentimentos antagônicos aos semelhantes.

Era um paradoxo existencial, quanto mais aproximava-me de Fernando como pessoa, mais distanciava-me das pessoas como Fernando. Parecia que éramos fronteiras de um mesmo território. Seria muita pretensão de mim à parte?

Pouco a pouco o breu da noite invadiu nosso ambiente e junto trouxe a sensação de que havíamos esgotado nossa saudade. Já era tempo de voltarmos cada um ao seu destino, despedimo-nos como grandes amigos: aperto de mão, grande abraço e um até breve. E lá fui-me, próximo da esquina mirei a janela de seu quarto e pude ainda registrar a silhueta daquele a quem ... tudo vale a pena... se a alma não é pequena. (**)

Continuei em minha caminhada imaginando que roda moinho era a melhor definição para as emoções despertadas após as confidências de nossas ignorâncias ao ato de viver. Segui e em minha reflexão os fragmentos da conversa embalava o ritmo de meu passos por entre aquele bando de viventes que nem sequer notavam minha presença, quanto mais minha existência... “De tanto pensar-me, sou já meus pensamentos mas não eu” (*)

*Livro do Desassossego (trechos 116 e 193)
**Mar Português > Fernando Pessoa (1888/1935) Poeta e Escritor Português.

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