sexta-feira, 22 de março de 2013

E a lambança Enem...

"Se escrevesse uma receita de bolo, eu teria de considerar", diz avaliadora que participou das correções das redações

Em entrevista a Zero Hora, professora de língua portuguesa diz que a ordem é para aprovar o maior número de pessoas

Letícia Duarte

Arrependidas de terem participado das correções do Enem, duas professoras gaúchas decidiram romper o contrato de sigilo para revelar bastidores da prova. Pedindo anonimato, uma delas detalhou nesta quarta-feira a ZH, por telefone, como teriam recebido orientações para fazer "vista grossa" aos erros encontrados. Professora de língua portuguesa há 12 anos, diz que a ordem é para "aprovar o maior número de pessoas":

Zero Hora – Que orientação vocês receberam para as correções das redações?

Avaliadora – Recebemos uma formação, fizemos exercícios pelos quais fomos avaliadas, tudo via online. Isso partiu da Universidade de Brasília. Foram seis, sete semanas de atividades, para os 8 mil avaliadores. No dia 14 de novembro, tivemos uma reunião em que foram repassadas as verdadeiras orientações. Fomos orientados a esquecer tudo o que se sabe, tudo o que se aprendeu, tudo o que se fez na formação. Deveríamos considerar a ideia de que é para aprovar o maior número de pessoas. Eu e a outra colega tentamos desistir, mas nosso grupo já estava um pouco defasado. Como já tínhamos nos comprometido, ficamos.

ZH – A senhora pensou em desistir ao ouvir as orientações?

Avaliadora – Sim, porque eu questionei o que eu estaria fazendo ali. Qual o meu papel de especialista em linguística de texto, de professora de língua portuguesa, de pesquisadora da área, se teria de fazer vista grossa e considerar uma série de absurdos?

ZH – Que tipo de coisas falaram que se deveria fazer vista grossa?

Avaliadora – Por exemplo, num texto, se aparecesse a palavra imigração ou imigrante, que era o tema, eu não poderia anular. Eu deveria pelo menos dar um ponto. Se ele escrevesse uma receita de bolo, mas pusesse imigração em algum momento, eu teria de considerar, não poderia anular. Outra coisa que eu fiquei muito chocada: se aparecesse um texto como poesia, ou narrativa, mas que tivesse a ver com o tema, e que se eu sentisse que em algum momento ele estava defendendo de alguma forma o ponto de vista dele, não poderia anular também, teria que dar um. A grosso modo, a orientação era essa: não anulem, só em último caso. A forma como fazem a seleção dos professores também é questionável. É tudo indicação. Ninguém te pede diploma.

ZH – Não se exige comprovação de formação dos professores?

Avaliadora – Não. Não existe.

ZH – Se alguém fingir que é professor pode ser avaliador?

Avaliadora – Pode. Se ninguém pede documentação... A inclusão parte de convites. Acho que funciona por ligações políticas. Essas pessoas são convidadas a ocupar esses cargos mais elevados e vão convidando pessoas que conhecem. Quem me convidou sabe que sou formada em Letras e faço correção há mais de 10 anos... mas será que isso ocorre no Brasil inteiro?

>> Leia mais: Denúncias de absurdos na correção das redações abalam Enem

ZH – Eles chegaram a dizer explicitamente que era para evitar dar nota baixa?

Avaliadora – Sim. Que era para evitar, porque nos anos anteriores eles receberam inúmeros recursos, que tiveram que responder na Justiça, e que isso onera a União. O tiro saiu pela culatra. Me arrependo até de ter participado. Financeiramente não vale a pena. Pagam R$ 1,90 por redação, tu tens uma meta diária de cem redações (3 mil redações por mês)... para quem trabalha e gosta de fazer um trabalho qualificado é bem complicado.

ZH – O processo é uma enganação?

Avaliadora – Sim. É um enganar... até o candidato, em relação a suas condições. Me considero enganada. Recebi formação, manual que estudei, e numa reunião me dizem para esquecer tudo isso.


Contraponto

Indicado pelo MEC, Paulo Portela, diretor do Cespe/UnB, que aplicou a prova, rebateu as acusações em entrevista ao repórter Eduardo Matos, da Rádio Gaúcha:

"Todo o processo de capacitação das bancas estava no edital do Enem. Existe uma matriz de correção, que é utilizada na avaliação. Nessa matriz existem cinco competências que devem ser avaliadas. E ali é bem descrito o que se exige para que a nota seja atribuída."

"Foram dois meses de preparo. Em cada nível existe o nível zero. Então o nível zero podia ser atribuído, sem nenhum problema, mas não se deve esquecer que quando avalia uma redação, essa redação foi desenvolvida por um egresso do Ensino Médio."

"A primeira competência é demonstrar domínio da língua padrão, da língua escrita. O nível máximo prevê excelente domínio da língua padrão e escassos desvios gramaticais. Então, mesmo se o aluno comete um erro no texto de 30 linhas, está dentro dessa competência."

"Todo o processo de correção foi planejado com um ano de antecedência. Inclusive houve uma série de simulações sobre a correção, verificação do tempo considerado adequado. E se chegou a um valor de correções para manter a qualidade, em torno de cem redações por dia. É um número possível, um nível médio. A média foi de 60 redações por dia por corretor."

Fonte: Jornal Zero Hora Porto Alegre RS