Capítulo I - O início
Ao entregar o lanche, percebi que o cliente estava centrado numa leitura, atendendo apelos de minha curiosidade, perguntei-lhe se gostava de literatura e qual era o assunto. Acenou-me que sim e virou a capa para mostrar o título que reluziu em grandes letras douradas: "Aquilo que os anjos fazem por você". Logo abaixo anunciava tratar-se de uma obra sobre auto-ajuda. Imaginei serem aquelas escritas para, após entusiástica lida, transformar a vida de qualquer um a qualquer momento em qualquer coisa. Com certa dose de ceticismo, resmunguei que se existe ajuda é para quem vende o livro, de resto não tive ainda a felicidade de conhecer alguém cujo destino tenha sofrido alterações de forma tão fácil como se apregoam em tais publicações. Soltei um suspiro irônico e voltei para as atividades de auto-ajuda no dia-a-dia da lanchonete que herdei da família de meu antigo patrão cuja passagem deu-se há dois anos. Dito presente acredito que me veio a título de gratidão ou indenização pelos vinte anos de serviços ao velho Domingos.
Esta atividade rende-me a sobrevivência, apesar de certas dificuldades, pois além de nunca ter almejado atuar nesta área, jamais imaginei que algum dia seria um patrão e muito menos proprietário de alguma birosca. Ainda assim, sou grato à vida que brindou-me a garantir o pão, bem como me guiou rumo à simplicidade cuja isenção de certos supérfluos ameniza o peso da jornada. É nesse pequeno mundo que cumpro meu destino, desde as seis horas da manhã até as dez ou onze horas da noite, durante seis dias por semana, quando desempenho os papéis de atendente, cozinheiro, lavador de louça, comprador, pagador de contas e tudo mais que se fizer necessário. Tenho ainda dois ajudantes, o Netinho que serve para qualquer tarefa e a não menos importante e competente Jurema, cozinheira e responsável pela organização do local. Uma negra linda de fazer inveja a muita gatinha... confesso nutrir certa admiração, no entanto resguardo-me, pois onde se ganha o pão não se come a carne. Atitude cultivada através da convivência com a ótima formação do velho Domingos, um português direto dos Açores que aqui viveu mais de cinco décadas, dentre as quais, aquelas que me deram o privilégio de compartilhar de sua experiência e conhecimento, além do gosto pelos livros cuja coleção conservo a sete chaves.
Ao entregar o lanche, percebi que o cliente estava centrado numa leitura, atendendo apelos de minha curiosidade, perguntei-lhe se gostava de literatura e qual era o assunto. Acenou-me que sim e virou a capa para mostrar o título que reluziu em grandes letras douradas: "Aquilo que os anjos fazem por você". Logo abaixo anunciava tratar-se de uma obra sobre auto-ajuda. Imaginei serem aquelas escritas para, após entusiástica lida, transformar a vida de qualquer um a qualquer momento em qualquer coisa. Com certa dose de ceticismo, resmunguei que se existe ajuda é para quem vende o livro, de resto não tive ainda a felicidade de conhecer alguém cujo destino tenha sofrido alterações de forma tão fácil como se apregoam em tais publicações. Soltei um suspiro irônico e voltei para as atividades de auto-ajuda no dia-a-dia da lanchonete que herdei da família de meu antigo patrão cuja passagem deu-se há dois anos. Dito presente acredito que me veio a título de gratidão ou indenização pelos vinte anos de serviços ao velho Domingos.
Esta atividade rende-me a sobrevivência, apesar de certas dificuldades, pois além de nunca ter almejado atuar nesta área, jamais imaginei que algum dia seria um patrão e muito menos proprietário de alguma birosca. Ainda assim, sou grato à vida que brindou-me a garantir o pão, bem como me guiou rumo à simplicidade cuja isenção de certos supérfluos ameniza o peso da jornada. É nesse pequeno mundo que cumpro meu destino, desde as seis horas da manhã até as dez ou onze horas da noite, durante seis dias por semana, quando desempenho os papéis de atendente, cozinheiro, lavador de louça, comprador, pagador de contas e tudo mais que se fizer necessário. Tenho ainda dois ajudantes, o Netinho que serve para qualquer tarefa e a não menos importante e competente Jurema, cozinheira e responsável pela organização do local. Uma negra linda de fazer inveja a muita gatinha... confesso nutrir certa admiração, no entanto resguardo-me, pois onde se ganha o pão não se come a carne. Atitude cultivada através da convivência com a ótima formação do velho Domingos, um português direto dos Açores que aqui viveu mais de cinco décadas, dentre as quais, aquelas que me deram o privilégio de compartilhar de sua experiência e conhecimento, além do gosto pelos livros cuja coleção conservo a sete chaves.
Sinto-me atrelado aos limites da qualidade da clientela que aprendi a cultivar através dos bate-papos sobre futebol, política, história, literatura, entre outros. Tais momentos refletem a perfeita camaradagem. Um genuíno ânimo democrático que se traduz na devoção dos companheiros da mesa seis. Recanto recheado de acaloradas discussões que transformam seus membros em verdadeiros e eloqüentes especialistas em resolver os problemas dos demais seres do planeta, desde que os conflitos pessoais fiquem fora das análises, aliás comportam-se como se não enfrentassem qualquer adversidade. Isso tem sido bom, pois acredito que tal alienação tácita envolvendo as individualidades contribui para a atmosfera simpática e de agradável convivência onde inexistem ataques ou críticas, mas sim o desejo de palpitar... evita-se dessa forma alguma desavença entre os integrantes cujos encontros no final da tarde até eu determinar se vou além das onze horas, casos que acontecem quando acompanhado de meu chimarrão resolvo contribuir na resolução das equações gerais. Não existem fronteiras para nossas rodadas, vamos desde o vizinho que resolveu mudar a cor do carro porque seu time entrou pelo cano até o pistoleiro presidente americano e suas peripécias no Iraque.
Não existe situação insolúvel para os companheiros da mesa seis cuja composição atual conta com seis elementos, por isso mesa seis. Já foi mesa cinco, mesa sete, lá nos tempos do velho Domingos, quando iniciou-se o ritual, eu e o velho formamos os palpiteiros da mesa dois. No último encontro reuniram-se quatro aliados, sem contar a minha presença facultativa, pois depende do fluxo de clientes e de meu interesse pelos assuntos do dia. Ops! parece que o pessoal está a chegar.
--E aí Portuga tá pronto prá jogar conversa fora hoje, aproveita e manda uma daquelas de latinha.
--Hoje só tem esta “marca diabo”, isto é, ninguém sabe de onde veio, serve?
--Manda, o primeiro gole é diferente, depois é tudo cerveja.
Esse é o Jordão, um negrão de dois metros de altura por três de largura, fisicamente mete medo em qualquer desavisado, entretanto trata-se de um doce de pessoa, empregado de uma multinacional ligada à indústria química, de boa conversa, excelente comportamento, defensor das minorias e dos excluídos, pois segundo sabemos, vem de origem miserável, condição que não lhe impediu de formar-se em administração e hoje ocupar um cargo na alta gerência.
--Chegou cedo negão?
--Negão é teu passado, por gentileza, meu nome é Jordão!
--Tá legal! Pelo jeito teu time "entrou pelo cano" ontem?
--Não é isso, é que lá na empresa vieram com uma conversa de reengenharia nos cargos. Como sou vacinado para não dizer "preto" e conhecedor das artimanhas que cercam essas “renovações, receio estar na marca do penalti.
--Isso é problema teu, você bem sabe que aqui nós evitamos comentar a vida pessoal dos integrantes da mesa, tem sido assim desde os tempos do velho Domingos, então continuemos com a tática vitoriosa.
--Obrigado por refrescar minha memória, afinal aqui é para “relaxar” e não chorar pitangas. Dá outra “marca diabo”, o primeiro gole desceu rasgando, agora tá um veludo... eheh
Enquanto o negão, aliás o Jordão esquentava a cadeira e lançava a gelada goela abaixo, voltei ao atendimento do balcão, hoje parecia um dia atípico, talvez pela proximidade do décimo, o pessoal tava gastando mais que nos outros dias. Seguia servindo os clientes e vez por outra dava uma conferida na mesa que abrigava somente o Jordão e suas reflexões. Combinamos que não nos envolveríamos em problemas pessoais, mas é impossível não ficar sensibilizado, nem que seja em pensamentos. Assim, torcia para que o Jordão superasse a fase ruim, já havia percebido há semanas que andava apreensivo. Suas gargalhadas já não soavam tão elevadas e suas piadas ficaram sem sal, imaginava que algo havia e hoje tudo clareou. Pedi para a Jurema preparar uma porção de aipim e bacon fritos para a mesa seis, pois o segundo integrante estava tentando atravessar a rua.
Era o não menos querido “Calmon”, um ourives que mantinha sua oficina em casa, fabricava anéis, pulseiras, entre outros artefatos em ouro e prata. Às vezes, chamava-o de Tostines, em alusão aquela propaganda de biscoitos: tostines é fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é fresquinho. Era para sugerir o trocadilho: Calmon é marcha lenta porque é ourives ou é ourives porque é marcha lenta. Em virtude de sua tranqüilidade quase absurda, nada parecia abalar aquela estrutura, sempre com o mesmo semblante, um conservador que não acreditava em mudanças, revoluções entre outros movimentos. A nossa brincadeira não lhe afetava, pois nunca reclamou. Sua bebida predileta era soda limonada com suco de limão e muito gelo, não suportava qualquer bebida alcoólica, nem por isso deixava de freqüentar a mesa cujo espírito democrático abrigava correntes de todas as cores, vícios e virtudes.
--Boa noite seu Calmon, além da soda deseja mais alguma coisa?
--Sim, pede para a Jurema preparar aquelas torradas com manteiga e alho que só ela sabe fazer.
--Tudo bem e cuidado com o Jordão, hoje ele está muito sensível, prá não dizer "puto da cara".
Voltei-me para o atendimento da galera que não parava de chegar; era dois "real" de bala, um picolé, dois "pastel" e um "refri", um cafezinho, e assim por diante. Aproveitei um intervalo e levei o jornal para a turma da mesa que agora já incluía a presença do Bigode, um publicitário cuja paixão em debater os temas políticos ia as raias da loucura. No fundo era um grande sofredor, pois suas criticas às mazelas do nosso sistema incluíam de igual maneira a nossa condição de impotentes para realizar alguma mudança e quem sabe amenizar o impacto do abismo que separa o governo do povo. Seu vício era o cigarro, beber não era com ele, assim acompanhava o Calmon, soda com suco de limão, torradas e picles.
--E aí Bigode, já pedi para o Netinho preparar o de sempre, ok?
--Eu quero suco daquele limão verde, não me apareça com o amarelo que mando de volta.
--Já captei a mensagem gafanhoto...heheheh
Existia um clima de camaradagem inexplicável entre nós, eu ali servindo aquela mesa com prazer, sem considerar que era meu trabalho e que naturalmente cobrava. Servi-los ultrapassava em muito a simples relação comercial. Era manter aquele elo cujas cores davam brilho à minha existência, pois na presença deles encontrei muita inspiração, além de muito discernimento para entender a natureza humana, incluindo a minha. Momentos que registrava nos textos idealizados em minhas horas de lazer. Passagens que me afetaram ao freqüentar a mesa seis, algumas pelo significado político outras pelas atitudes humanas sugeridas. Adquiri esse hábito através do velho Domingos que em dias de baixa temporada ou quando lhe gritava a inspiração, pegava um caderno e punha-se a preenchê-lo com as impressões do cotidiano. Algumas vezes leu-as para mim, o suficiente para contaminar-me, assim aprendi os prazeres de um lazer barato.
Lá vem nosso radialista, o Pedroso, grande figura, admirado por todos e em especial por mim, pois diariamente, enquanto ajudo a Jurema lavar a louça após o almoço, acompanho seu programa. São preciosos momentos de reflexão sobre os variados temas que envolvem a participação do ouvinte.
--Boa noite Portuga. - sorrindo Pedroso.
--Buenas meu caro! Vai querer aquela cervejinha ou hoje é água mineral?
--Água mineral é natural e não faz mal...eheh
--E para acompanhar, algum petisco?
--Camarão ao bafo.
--Por falar em camarão, quando vou lá naquela peixaria e digo que sou ouvinte do teu programa o pessoal trata-me tão bem que chego a passar mal... que moral a tua hein!
--Não exagera! - encerrou Pedroso.
Ao entregar a água para o Pedroso, aproveitei para bisbilhotar o que estavam conversando. Parecia que o assunto girava em torno das atitudes de nossos velhos e conhecidos políticos. Imaginei que a conclusão seria nenhuma, pois sai dia, entra dia, sai político, entra político, e o quadro permanece ao gosto de quem detêm o poder. Fácil dedução. Isso não elimina nosso constante esforço em buscar alternativas visando equilibrar o jogo de interesses que envolvem a sociedade. Nessa luta, o melhor que conseguimos até aqui, foi o sentimento de frustração - murmurou o Jordão. Na seqüência os demais impingiram aos membros da classe política toda a sorte de conceitos; indo do egoísmo alucinado até a capacidade de transformar mentiras em verdades aos olhos dos incautos. Deixei-os em suas questões e voltei-me as tarefas de bodegueiro, sem antes anotar algumas palavras que me incomodaram: frustração e crítica violenta aos políticos. Esses termos ficaram viajando em meus neurônios durante o resto da noite enquanto preparava-me para encerrar as atividades.
--Aí gurizada medonha... vamos encerrar o espetáculo?
--Tá bom! Anota tudo na minha conta - respondeu o Jordão.
Foi uma gritaria geral, ninguém concordou com aquilo, no entanto o Jordão continuava insistindo, perguntei-lhe o motivo de tamanha teimosia em pagar a conta. Levantou os dois metros da cadeira e timidamente relatou que hoje era seu aniversário. Após um breve parabéns e cumprimentos de todos, a turma retirou-se.
Baixei as portas, apaguei as luzes e subi pela escada caracol até o andar de cima onde era o meu lar. Nos tempos do Domingos a parte superior era uma quitinete que servia aos moradores do bloco, até o dia em que ele comprou e transformou-a em depósito, além de providenciar-me modestas acomodações que me abrigam há mais de quinze anos; as instalações são simples, cama, banheiro, guarda-roupa, mesa e duas cadeiras e o meu maior tesouro, um velho baú com variadas obras que acompanharam o velho português desde sua terra natal e que hoje compartilham minhas horas de lazer.
Ajeitei-me em busca do sono, após alguns minutos de rola prá lá, vira prá cá, percebi que meus neurônios ainda replicavam os termos oriundos dos acalorados debates entre os integrantes daquela noite. Conhecendo-me, levantei e iniciei meus relatos. Já estava habituado com esta ansiedade. Eram as idéias gritando para pularem para o papel. Aí então, aliviava-me, pronto para a próxima. (FIM do Capítulo I)
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