sexta-feira, 29 de julho de 2011

Onde houver... que eu leve...

A comunidade vivia um drama comum: fome. Ali, a luta pela sobrevivência perambulava diariamente entre as ruelas e barracos indignos de morada. A falta de saneamento transformava tudo numa grande fossa a céu aberto, com a proliferação de ratos, baratas entre outros transmissores de doenças. O cheiro era contaminado pelo lixo do lixo depositado de qualquer jeito a céu aberto. Ciente disso e sem as mínimas condições morar em outro lugar, aceitei a oferta de um canto onde só existia uma cama, aliás, pedaços de uma. Mal conseguia movimentar-me naquele cubículo, entrava meio de lado para, após certo esforço, enfim ajeitar-me. 
Não tinha roupas, assim não precisava guarda-roupa. Não havia energia nem aparelhos elétricos. Dessa forma minha mobília se restringia às velas e uma lata para as necessidades de peso, já que o xixi mandava pela janela mesmo, direto no valetão do antigo riacho que algum dia passou por ali. O aluguel era trazer alguma goreba para contribuir na alimentação daquelas crianças. Eram seis, uma escadinha, indo do mais novo com um ano até a mais velha com nove. Netos da senhora que me cedera o espaço. Não direi que foi amor à primeira vista, entretanto senti-me na obrigação de estender-lhes a mão e tudo o mais que de mim fosse possível. 
Assim, lembrando da imagem daquelas crianças imundas, doentes e com a miséria estampada em seus rostos, dirigia-me ao centro da cidade para buscar o nosso sustento. Revirava as lixeiras que encontrava pelo caminho, mas devido ao aumento da concorrência, caminhava cada vez mais longe, às vezes fazia mais de dez quilômetros para finalmente conseguir algumas sobras comíveis. Quando então, já era hora de voltar. Torcia para que os famintos não sucumbissem em minha ausência. Era lastimável o estado de miséria instalado naquelas gentes. Durante várias semanas nesta rotina, sair de manhã e voltar à tardinha, às vezes conseguia algumas moedas doadas pelo caminho, com as quais comprava guloseimas ou leite para as crianças menores. Nunca comprei algo para mim, pois já estava acostumado a sobreviver de restos ou ficar alguns dias na base da água. Pensava muito naquela família, isso sim, merecia atenção especial. 
Até que certa noite, ao voltar para casa, ao aproximar-me do barraco ouvi gritos, carros movimentando-se, sirenes e estampidos de várias intensidades. Era o confronto entre a polícia e alguns elementos que se escondiam por ali. Já presenciara tiroteios noutras ocasiões e lugares, mas não com tamanha intensidade. Senti medo, muito medo e quando o pavor apossou-se de mim, corri. Desejava conferir se tudo estava em ordem, se o pessoal estava em segurança, além de esconder-me, é claro. 
Tamanho desespero, devido ao zumbido dos projéteis que cruzavam próximos, fez-me entrar pela janela. Surpreendi-me ao ver a turma com cara de fome, mas muito alegres, seus olhos vibravam de felicidade. Parecia que alguém estava comemorando algum evento. Eu sem saber se chorava ou ria. Quando a vó, com a mesma alegria das crianças, tocou-me o ombro e disse para ficar tranqüilo, pois aquela barulheira em breve cessaria. E assim, depois de algum tempo de sirenes, tiros, rajadas, gritos de pavor e motores... tudo se aquietou. 
Quando então veio a ordem para que preparássemos o fogo e a água, pois haveria um ensopado daqueles - deduzi ser este o motivo da festa. Vibrei com a possibilidade de saborear algo feito na hora, quentinho... hummm.... há tempos que não comia algo assim. Então, sob o breu da noite e com uma grande faca nas mãos, aquela senhora que mal conseguia andar pelo peso da idade, retirou-se. Após alguns passos, se abaixou e iniciou seqüência de golpes naquilo que parecia ser uma das vítimas do confronto.

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