domingo, 10 de julho de 2011

Marmita

Às quatro horas da madrugada o despertador tocou, parece ter dormido apenas cinco minutos. Meio zonzo ainda, tropeçando nas cadeiras, dirigiu-se ao banheiro. Concluída a higiene matinal, chegou na pequena cozinha para preparar o café e seu almoço. Estava no horário, pois o radico anunciava-lhe a hora de dez em dez minutos, isso o tranqüilizava, já que sairia até às cinco horas. Enquanto a água aquecia, pegou o arroz, o feijão e o ovo cozido na velha geladeira. Ajeitou tudo na marmita. Esse era o cardápio dos últimos anos. Após acomodá-la na sacola sentou-se para a primeira refeição do dia. Hoje seria o que foi ontem e a maioria dos dias nos últimos tempos: café, leite, pão e talvez margarina. Estava tão habituado àquilo que nem saboreava, somente engolia e quando sentiu que a barriga estava cheia, deu-se por satisfeito. Lavou a boca, penteou o cabelo, pegou a mochila e rumou em direção ao ponto de ônibus, seriam mais trinta minutos de caminhada, morava onde seu dinheiro mal supria a sobrevivência. Amanhecendo e lá vai passo a passo cumprir seu destino. E que destino, ainda teria que embarcar em mais duas conduções até chegar no emprego às oito horas. Não reclamava de nada, aquela era a sua vida e só. Resignava-se com a carreira de auxiliar de produção cujo salário era quase suficiente para mantê-lo e a esposa. Pagava moradia, água, energia e o que sobrava tentava comprar comida. Nem sempre era possível, pois há meses vinha rolando dívidas na venda do seu Almerindo, entre outras.

Na parada do ônibus, enquanto aguardava, mirava o horizonte com um olhar vazio, sem expressão alguma, quem o visse daquele jeito diria que estava drogado, no entanto era a viagem proporcionada pela vida miserável que levava. Esta sim, era sua chapação, mal ganhar para comer, trabalhar de segunda a sábado, sair de casa às cinco horas da manhã para retornar somente às dez horas da noite, tomar um banho, jantar e perto da meia-noite cair no sono por quatro horas. Quanto tempo alguém agüentaria uma rotina dessas. Ele estava há dez anos, não era à toa que seu olhar fosse de outro mundo, olhar de quem já se foi há muito tempo. Era o estresse da miséria, do sono, da falta de comida, da falta de dinheiro, era o estresse da falta de futuro. Chega o lotação, embarca como quem entra em uma lata de sardinhas e lá vai junto com a tropa. Sim, aqueles que ali estavam não pareciam tão diferentes, reunidos como um bando de infelizes, sem muitas alternativas, que partiam daquele bairro em busca de oportunidades a mais de trinta quilômetros. Quase todos conhecidos naquela rota diária, trocavam olhares e, lá uma vez que outra,  alguém arriscava algum cumprimento.

Pareciam  filhos do mesmo pai e da mesma mãe. Até suas vestimentas eram semelhantes, diria até que compravam na mesma loja. Aquilo era triste de ver, triste de conviver e acaba sendo triste de lembrar. A condução seguia seu destino, parando aqui e ali, ajuntando mais irmãos para depois jogá-los em um terminal no centro da cidade onde cada um tomaria seu rumo. Acompanhando o balanço do ônibus nas curvas, nas descidas, nas paradas e nas arrancadas, enfim sorria, essa era sua diversão. Sacudir-se no embalo, era quando a vida lhe parecia voltar. Como alguém podia desejar tão pouco, ele desejava. Chegando no horário, mais um dia ganho, era seu desejo. Assim, no treme-treme da estrada irregular, aquela turma seguia.

Ao chegar no terminal, bagunça geral, em uma porta onde só passam duas pessoas, havia a disputa de dez querendo sair. Depois de muito empurra daqui, puxa dali todos vão saindo. Ele no meio do tumulto procurando se defender dos empurrões e tentando seguir em frente, até que sua marmita salta da sacola e sai rolando, ninguém para pegá-la, alguns ficaram olhando-a parar embaixo do ônibus. Estava intacta, não abriu, o rango ficara protegido. Então ele se abaixou e avançou para apanhá-la, quando estava sob o ônibus o motorista arranca o veículo de quatro eixos que passam (uma... duas... três vezes) em cima de suas pernas que simplesmente foram esmagadas, quase decepadas. Pânico geral. Chamaram a emergência no ato. Quando os paramédicos chegaram, surpreenderam-se ao vê-lo ali, naquele estado mórbido, quase morto. Sem nada gesticular, puxa um trapo velho do bolso e começa a limpar a marmita que segurava junto ao peito.

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