sexta-feira, 1 de julho de 2011

Repolho, repolho e repolho

O que me leva muitas vezes a escrever é o desejo de exorcizar lembranças ou pensamentos. Destilar o veneno, como diriam alguns. Ou seja, enquanto não formatar o texto, me incomodam as imagens advindas. Assim, há dias relembro dum fato que estaria mais para comédia. Se para mim, à época, não fosse uma tragédia. 

Vivia em um quarto. Exercia um trabalho temporário cujo pagamento em atraso era rotina. Entre um salário e outro, se passavam muito mais que trinta dias, às vezes até cinqüenta, isso me colocava em maus lençóis perante meus fornecedores (pensão, panificadora e a birosca do Chen). Era uma ginástica e tanto para quitar os compromissos. Até que chegou o dia em que tudo estava ruim ficou pior. A empresa era uma arapuca que sumiu do mapa deixando clientes, fornecedores e empregados a ver navios. Fiquei tão indignado que nem liguei. Sabia que chorar as pitangas não pagaria as contas. Resignadamente saí a cata de alternativas em meio à inflação galopante cujo mercado trabalho retraído só aumentava as dificuldades de quem estava começando na vida. Além da minha falta de qualificação, outro entrave, que me condenava a trabalhar como auxiliar de qualquer coisa em qualquer lugar. 

Enquanto isso, a fome não aceitava explicações, precisava de comida. Fui ao bar do Chen, um jovem chinês muito esquisito, almoçar pão com ovo e catchup. Apesar de noutras ocasiões gostar de bolinho de carne e pastel, a situação exigia filé branco ou o popular ovo frito. E de sobremesa veio a notícia que meu crédito voltaria quando quitasse as dívidas. Putz! Pensei. Mais essa. E agora José? Resmunguei. Será que pode piorar mais? Pode! Ao chegar em casa, a dona da pensão me aguardava em frente do quarto e perguntou-me se havia comprado televisão ou rádio. Disse-lhe que sim, uma tevê portátil. Respondeu que cobraria adicional pelo uso da energia e que o aluguel estava em atraso. Caso não quitasse dentro de uma semana, haveria despejo. Nada é tão ruim que não possa ficar pior, imaginei. Será?

Pois determinada noite, ao me aproximar do quarto, senti algo pressionar as costas e a ordem para calar o boca, não me virar e entrar. Fiquei entre o armário e a parede enquanto a voz enchia as malas com tudo que era possível, roupas, televisão, rádio de pilha, despertador, ferro elétrico, sapatos, tênis, etc. Só não levou o que eu vestia e algumas peças que estavam molhadas no varal. Quando a voz sumiu, comecei a rir tão alto que acordei boa parte dos inquilinos. (Meses mais tarde, a polícia descobriu que o ladrão da redondeza era o dono do buteco ao lado da pensão. Era meu conhecido. Velho canalha.)

Na manhã seguinte, refeito da alegria da noite anterior, segui meu destino à procura da salvação, e ela veio enquanto tomava cafézinho. Chegou um sujeito muito falante. Nas mãos vários carnês de um time de futebol onde estampavam fotos de automóveis, eletrodomésticos entre outras. Ofereceu-me. Quis saber do que se tratava, disse-me que era pagar certa quantia mensalmente e daí concorrer aos diversos prêmios.

Interessei-me e conversamos até descobrir onde encontraria para revender. Lá me entregaram cinqüenta unidades na condição de novo pedido dali a quinze dias. Com a mercadoria  em mãos, num primeiro impulso levei ao bar do Chen, onde deixei vinte como garantia das dívidas, outros vinte entreguei à dona da pensão para manter o aluguel. E agora precisava sobreviver até botar a mão em mais uma remessa. Sobraram dez, ao vendê-los receberia a comissão de valor negociável (o valor da entrada era meu, tinha o poder de dar desconto)... Aí então percebi que a sobrevivência pelos próximos quinze dias estava atrelada à venda dos dez carnês. E agora? Fazer o quê?

Feitos os cálculos, sobrou um cardápio a base de repolho, pão e lá vez que outra ovo ou tomate. Nos primeiros três dias tudo transcorreu dentro dos conformes, isto é, o repolho em forma de salada ou refogado mais alguns pedaços de pão, saciavam-me sem trauma. Mas a partir de um determinado dia, aquela dieta começou a incomodar, pois comia só quando doìa a barriga, então para amenizar o desconforto é que refogava o repolho mais a salada de repolho para acompanhar. Arghhhh! Só de lembrar. Arghhhh! Mas o que me mantinha firme eram os pratos acompanhados com o tomate ou ovo. Duas vezes na semana o dia se transformava num colorido muito especial, só porque havia algo além do abençoado repolho. Foram mais de quinze dias de intenso sabor. Dias de repolho, repolho e repolho. E eu que insistia em imaginar que pior do que estava não poderia ficar. Ficou, mas isto é história para outra ocasião.

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